A era do fakenice, do cancelamento, da lacração e do linchamento virtual.
Wilson Carvalho
Tempos estranhos esses de agora, em que pessoas se apresentam como ferrenhas defensoras da liberdade e da democracia, mas preferem lacrar em lugar de dialogar, cancelar em vez de ouvir, linchar em lugar de convencer. Se dizem humanistas, mas por nada decidem acabar intelectualmente ou profissionalmente com um ser humano, sem chance de defesa e sem o menor remorso.
Seria engraçado se fosse apenas uma modinha entre os adolescentes brincando de participar ativamente da vida política do país, mas não é. Muito pelo contrário, é uma onda que envolve intelectuais de alto nível (pelo menos em termos de titulação), que aderem efusivamente a ela, como vítimas de uma adolescência tardia, que, mantendo essa imagem do jovem eternamente aborrecido conseguem encontrar algum sentido em sua vida.
Mas quando participam dessa onda adultos que atuam na educação, na arte e na política, e quando isso atinge e destrói vidas de profissionais sérios, que do dia para a noite se descobrem foco das mais abjetas acusações, sem sequer saber qual foi o erro cometido e sem possibilidade de defesa porque não têm a melhor chance diante de pessoas que preparam sua via a partir das mídias digitais, instaura-se um sutil e bizarro autoritarismo.
Sim, estamos entrando alegremente em uma era de autoritarismo e que, como todas que têm sido impostas ao longo da história, esta também é instaurada em nome dos mais belos conceitos da humanidade, como o amor, a liberdade, a coletividade, etc.
E não se diga que isso é apenas o resultado do cada vez maior acesso das pessoas comuns à mídia, por meio da tecnologia e das redes sociais. Ou que hoje, qualquer pessoa que tenha uma boa criatividade, um corpo maravilhoso, ou alguma habilidade extraordinária, pode tornar-se um “digital influencer” e ficar rico por ter milhares de seguidores nas redes sociais.
Claro, isso viabiliza, mas não é o ponto fundamental. Fakenews (noticias falsas) sempre existiram, embora seu alcance fosse menor. A grande questão é: porque as pessoas procuram e fazem questão de acreditar nesse tipo de notícia, que na maioria das vezes nem sequer apresenta coerência lógica? A resposta é simples: porque elas querem acreditar, têm interesse em acreditar. Principalmente, porque reforça o discurso que precisam defender. E aí não há importância nenhuma se é verdade ou não, se apresenta coerência lógica ou consistência interna. São, para esses interessados, as fakenice (belas falsidades).
Como mostra Foucault, o poder se dilui. De posse de mentiras construídas com objetivo torpe, qualquer um pode exercer uma fatiazinha de poder. Eu posso destruir meu rival que está em uma trajetória ascendente acionando blogueiros que estão sob meu controle, apenas inventando que há um sentido racista embutido na letra da sua música de maior sucesso, e acabar com ele. Os sofistas de hoje fazem isso com a maior facilidade, e daí para passar ao “cancelamento” de uma pessoa nas redes sociais (impedindo que se defenda), para em seguida promover o “linchamento virtual” dessa pessoa impunemente. É tão fácil para alguém que tem o poder de milhares de seguidores. Nesse processo, quem tem mais poder nas redes sociais, vai adquirindo e mantendo cada vez mais poder.
Nada de novo até aqui. Só mudou a velocidade e os titulares do processo. Agora um político nem precisa mais ser proprietário de uma rede de emissoras e jornais. Mas continua precisando pagar os maiores “donos” de seguidores nas redes sociais.
Papel fundamental nesse contexto tem o conceito de “lacração”. Ele explica uma mentalidade que se tornou moda entre os adolescentes e que foi rapidamente assumida por pessoas de má fé: a necessidade de “lacrar” em um debate. De fato, conseguir “lacrar” em um debate pode proporcionar a um adolescente carente de reconhecimento uma imensa satisfação. Como brincadeira pode ser até engraçado. Agora, “lacrar” em um debate sério, econômico ou político, representa a atitude mais contrária e improdutiva que pode existir para a Filosofia e para as Ciências Sociais.
É triste quando essa atitude é apresentada por um debatedor que se intitula marxista, porque afronta o mais caro conceito do pensamento materialista-dialético, que é o conceito de “práxis”. E, de toda sorte, não há nada mais improdutivo, inútil e enganador em termos de lógica e argumentação, tanto para a Filosofia como para as ciências, como calar o oponente com a pressuposição de que seu próprio argumento é definitivo, até porque isso não existe, nem para a Filosofia e nem para as ciências, que são essencialmente antidogmáticas.
De Platão a Hayek, os grandes pensadores reconhecem que a ciência não se confunde com “a verdade”. Científico é um procedimento ou conhecimento justificado e assentado em bases confiáveis, válido para determinadas condições. Jamais a verdade única, eterna e imutável.
Essa é a principal diferença entre os conhecimentos epistêmicos (ciência e Filosofia) e os outros tipos de conhecimento, como o senso comum ou como o bom senso. E aqui podemos voltar ao conceito basal do pensamento dialético, a práxis, que é essencialmente contraditório quando concebido como processo para alcançar verdades fechadas, imutáveis e eternas. Confundir “prática” com “práxis” pode revelar não apenas um conhecimento superficial do materialismo dialético como também a má-fé do argumentador.
Lacrar em debates pelas redes sociais, promover o cancelamento do debatedor cujos argumentos incomodam ou não reforçam o discurso defendido pelo grupo, incitar o linchamento virtual dos adversários, pode gerar uma imensa sensação de poder ao eliminá-los de um círculo (restrito) no mundo virtual. Em compensação, o mundo real pode continuar se desenvolvendo em uma direção totalmente inesperada, já que vivemos em tempos fluidos.
E aí a pessoa passa a o período eleitoral todo cancelando adversários nas redes sociais, seu candidato perde as eleições para o adversário mais improvável do mundo e diz: só pode ter sido fraude! Olho no meu face e só encontro posicionamentos favoráveis ao meu candidato. Tem algo errado nisso! E de fato tem, mas não com a apuração ou com as urnas. Ou então a pessoa chama de jumentos os eleitores do vencedor, consolidando a derrota porque continua mantendo a posição perdedora, agindo tal como agiram os “coronéis de barranco” quando uma imprensa escrita livre começou a ameaçar seu poder.
Ficar nas redes sociais lacrando, cancelando e linchando aqueles que pensam de forma diferente, não só é imoral, desumano e mesquinho, como também tem se mostrado ineficaz no combate ao autoritarismo que anda rondando o Brasil.
A solução? Um choque de realidade para os que ainda não compreenderam, e um choque de legalidade para os que agem de má-fé.