(Capa: obra do artista plástico José Alberto Tostes/UNIFAP)
A arte da arte
João Wilson Savino Carvalho
Gosto de me repetir dizendo que considero igualmente valiosas cinco formas de interpretação da realidade, a saber: o senso comum e o bom senso, a religião, a arte, a filosofia e as ciências, porque faço questão de enfatizar a necessidade de evitar o perigo representado pelo orgulho intelectual (ou arrogância) que toma conta do pensamento de quem acredita piamente que sua forma de interpretação da realidade é a perfeita e a única válida. O seja, aquele que se acredita um pensador, mas, na verdade, não é sequer um ideólogo, mas sim um seguidor de uma ideologia disfarçada, e eu, junto com meus mestres Benedito Nunes (“O dorso do tigre”, 1969 – O sentido ontológico da arte) e Mota Peçanha (“Cultura como ruptura”, 1987), desconfio profundamente de todos os monismos.
Coloco o senso comum junto com o bom senso por que, embora distintos, são bem próximos em suas fontes, que são a observação cotidiana e a aprendizagem social da vida, e por isso são impregnados pela ideologia dominante numa dada sociedade. A religião, embora tenha como fonte os livros sagrados e como critério de verdade a fé, quando autêntica, não deve ser desprezada por conta dos valores de respeito que pode incutir em cada cidadão. A arte, para alguns (dos quais discordo), não é verdadeiramente uma forma de interpretar a realidade, por que tem como fonte a perspectiva individual da vida e depende do talento do artista e da sensibilidade do apreciador.
A Filosofia e as ciências são conhecimentos epistêmicos (aqueles construídos sistemática e metodicamente, buscando as causas), e diferem na forma da abordagem da realidade: enquanto Filosofia busca as causas últimas ou primeiras, visando um conhecimento abrangente relacionado ao sentido de tudo o que existe (o ser), as ciências buscam as causas imediatas dos fenômenos, focando em setores determinados da realidade. Ainda que ambas sejam pautadas em uma análise crítica da realidade, não estão imunes à ideologia porquanto obra do homem, que é um ser social e historicamente situado.
Mas, se é assim, porque a arte, nas ditaduras ferozes, é tão (ou até mais) perseguida quanto às formas epistêmicas de interpretação da realidade?
Em uma visão panorâmica lembraríamos rapidamente os rituais medievais da queima de livros proscritos pela igreja ou a perseguição dos nazistas aos escritores classificados como “inimigos do povo alemão” porque suas obras divergiam do pensamento hitlerista. Expurgos de escritores e queima ritual de seus livros em praça pública favorecem a unanimidade que sempre garantiu as maiores atrocidades cometidas pelas massas de fanáticos ao longo da história da humanidade.
Da mesma forma que é feita com os cientistas e filósofos (e também com religiosos, dependendo do caso), essa perseguição se dá seletivamente também com a arte, em especial com a literatura, que para os ditadores e líderes carismáticos totalitaristas parece ser mais perigosa que os fundamentados artigos científicos ou as eruditas reflexões filosóficas.
Talvez essa seja uma primeira explicação: a literatura tem um alcance incomparavelmente maior que a produção científica ou filosófica, geralmente restrita a círculos intelectuais insignificantes em termos de capacidade de modificação de atitude no nível do senso comum. Não resta dúvida que um cidadão comum se sensibilizará muito mais com o problema da desigualdade social assistindo uma obra cinematográfica ou teatral de arte engajada do que pela leitura de em uma publicação científica ou filosófica. A literatura, quando envolve e atinge a pessoa por uma via inefável, fica para todo o sempre.
Coloco o meu caso como exemplo, no qual a aversão que tenho de autoritaristas passou a fazer parte de minha forma de ser quando, ainda adolescente li “O triste fim de Policarpo Quaresma”, de Lima Barreto. Há nele algo de similar à forma como Erich Fromm explica o problema do autoritarismo em seu “Medo a Liberdade”, mostrando as duas faces do fenômeno, e por conta disso tenho esse livro como a melhor análise crítica psicossocial do autoritarismo levando as massas a atitudes absurdas.
Mas hoje, para cumprir seu importante papel de crítica social, a literatura enfrenta duas circunstâncias que talvez tenham raízes no mesmo problema. A primeira delas é a onda de revisionismo literário que desconsidera o contexto em que a obra literária foi escrita, e surfando na onda do discurso fácil que chama atenção dos holofotes, passa como um rolo compressor sobre respeitáveis escritores que contribuíram enormemente para o avanço da compreensão sobre problemas sociais complexos como o racismo estrutural ou as questões de gênero, em um enorme desserviço à sociedade, escamoteando o essencial, apenas com o objetivo de atrair visibilidade e afagar o próprio ego.
Quando li Lima Barreto e tomei contato com seu personagem que se ressentia da falta de reverência da sociedade com o seu instrumento musical, e que lamentava que uma pessoa talentosa que começava a dar notoriedade ao instrumento fosse “um preto”, embora eu fosse um adolescente numa época que nem se falava em racismo estrutural, não tive nenhuma dificuldade de entender que o autor estava me mostrando as nuances do racismo oculto nos costumes, nas falas do nosso cotidiano, e me levando a uma análise do meu modo social de ser. E hoje, simplesmente apagando falas e diálogos de personagens típicos em romances de época, por serem consideradas racistas, apenas estaremos convencendo os leitores do futuro que nessa época o racismo nem existia. Quando se diz que um escritor é testemunha de sua época, significa reconhecer que ele conseguiu registrar esse espírito. Ainda que seja doloroso, ele deve permanecer registrado, como direito dos estudantes do futuro em saber como era realmente a cultura dessa época. Fora isso, é apenas uma bela e inútil farsa.
A segunda circunstância que quero aqui assinalar é o imediatismo e a superficialidade das redes sociais, onde um texto um pouco maior ou mais denso recebe logo, como primeiro comentário, feito por alguém que se acha muito engraçado, é “quando virar filme eu assisto”, numa referência ao pensamento comodista de que um filme é capaz de substituir um bom livro. Talvez seja, se o objetivo for o de mostrar uma erudição que não existe, e não o de imergir em todo um universo que é um clássico da literatura.
Entretanto, as redes sociais ainda permitem que você, em poucas palavras, desperte a curiosidade para grandes temas abordados em obras literárias, e esse poder das redes não pode ser desprezado por quem ama a literatura. Evidentemente, se acaso um país ingressa em um regime autoritarista, qualquer que seja sua lateralidade, nele as redes sociais também serão vigiadas, e consequentemente a literatura perseguida também será bloqueada.
Bom, mas a literatura é arte, e a arte, nesse aspecto, é mais esperta que a filosofia e a ciência. Lembram-se do exemplo anterior, o livro do Lima Barreto? Pois então, ele apareceu como leitura obrigatória de universidades em plena década de setenta, no auge do autoritarismo civil-militar. Para os censores o romance deveria passar a ideia do conformismo. Entretanto, para os jovens, passou a aversão a qualquer tipo de autoritarismo. Esse é o poder e a mágica da arte, que não leva esse nome à toa.