Crônica de viagem
As Cores de Cuzco.
Não sou exatamente uma pessoa preconceituosa, muito pelo contrário, até incentivo muito o movimento GLS (ainda se diz assim? É este o termo politicamente correto, hoje?). De fato, sempre digo aos meus amigos que fazer parte do Movimento deve ser muito interessante, já que a pessoa recebe uma pressão danada da sociedade, uma gozação danada dos amigos (ou inimigos próximos!), a única que compreende e dá apoio geralmente é a mãe (mãe é mãe!), e o cara não larga! Deve ser danado de bom! Por mim todos os meus amigos se tornariam adeptos praticantes…
Mas então, um dia viajei para Cuzco, no Peru, realizando uma velho sonho, o de conhecer MachuPicchu, o último refúgio inca, nunca encontrado pelo conquistador espanhol. Uma viagem tenebrosa, descendo Macapá-Belém-Brasília-São Paulo, e em seguida subindo São Paulo-Lima… Passei três dias em Lima, num albergue em Miraflores que era uma loucura (embora muito limpo), a bom bater pernas pela cidade. Fiquei maravilhado. Os cambistas balançam maços de dólares em pleno centro comercial e não são assaltados… O pessoal da terceira idade dança até tarde da noite uma espécie de calipso misturado com reagae em uma pracinha linda, e não está nem aí pro frio… Tudo muito, muito barato…
Mas meu objetivo era MachuPicchu e as ruínas incas, então viajei mais uma vez de avião de Lima a Cuzco, uma viagem curta e agradável. O aeroporto de Cuzco é muito bem organizado, inclusive com recepção ao turista, e, pasmem, oferecendo roteiros turísticos com todos os preços médios dos passeios, para evitar que o turista desavisado seja explorado por eventuais espertalhões locais… Até um conjunto musical devidamente paramentado recebia o povo que chegava… Mas o frio um pouco mais forte que em Lima me fez pegar um taxi correndo para procurar um hotel.
E aí conheci o Álvaro, o típico faz-tudo dos filmes do século vinte. Motorista de um velho táxi, guia turístico e sindicalista militante. Foi logo me perguntando, em excelente portunhol, por que eu queria ficar em um albergue na parte alta da cidade, se eu gostaria mesmo era de andar a pé pelo centro de Cuzco, se eu não estava acostumado a carregar aquela monstra mochila na altitude… Tive que concordar, afinal o cara sabia o que estava falando… Em seguida me perguntou se eu havia reservado o trem para MP, e se eu sabia da “huelga” no dia seguinte, que pararia todo o setor de transportes… Me recomendou que nos tratássemos logo de comprar a passagem de trem, me explicou que não valia a pena pegar a primeira classe, por que o trem era o mesmo… Me ofereceu um albergue super barato bem próximo à Praça de Armas… Enfim, me deu todas as dicas necessárias para que eu não perdesse tempo e aproveitasse o máximo minha estada em Cuzco.
Impressionado com a dialética de meu novo amigo, acatei todas as sugestões. E de fato o albergue era barato, muito bem localizado e razoavelmente confortável, só não tinha nada de calefação, e houve noites que eu quase me embrulhei com o colchão (bem feito, pra nunca mais viajar sozinho).
Mas, enfim, satisfeito com o albergue, tão logo me alojei, saí para fazer o obrigatório reconhecimento do perímetro, uma ou duas ruas para cada lado, um ponto de referência que seja reconhecido na cidade… O que se deve fazer sempre em uma cidade estranha…
E aí o susto quando vi uma enorme bandeira arco-iris bem na fachada do hotel. Estava lá, tremulando orgulhosa como dona do pedaço. Pensei imediatamente: o fdp do motorista me trouxe para um albergue temático… E ele parecia um cara tão legal… Desconfiado, comecei a observar a fauna… Duas argentinas lindas me pareceram muito íntimas… Um grupo de brasileiros que jurava que ia descer de bicicleta pela Bolívia… Não, estavam mais para malucos! Uns suíços loiríssimos, tão bonitos, me pareceram suspeitos… Bom, talvez eu estivesse mesmo em um hotel temático, mas ninguém ia saber, então, tudo bem.
Pela manhã, surpresa maior ainda. A bandeira estava por toda parte. Mas quando a vi tremulando, enorme, na frente de um movimento grevista, bem ao lado da bandeira vermelha, não resisti mais. Escolhi o grevista com uma cara boa e perguntei com muito tato. Era a bandeira de Cuzco, herança do império inca, que os cuzquenhos ostentam com muito orgulho.
Me senti ridículo, preconceituoso e tolo, com minha cabeça da década de setenta. Eu, que sempre afirmei não ter qualquer tipo de preconceito… Prometi contar essa história pra todo mundo. Serve para descobrir os meandros e as facetas do preconceito, e enfrentá-lo de fato.
João Wilson Savino Carvalho – Julho de 2009. wilsoncarvalho@unifap.br.