O problema social da loucura. Foucault tinha razão?
“A pior das loucuras é, sem dúvida, pretender ser sensato num mundo de loucos”. Erasmo de Roterdã, Elogio da Loucura, 1501.
É impossível, para mim, olhar para um doente mental (ainda posso me referir a ele assim, ou já existe um termo mais atualizado e aprovado para designá-lo?) sem pensar em Foucault. E por que justamente Foucault? Poderia ser porque ele é mais conhecido como o pensador que analisa a sociedade a partir das relações de poder e opressão, que entende que a verdade nada mais é do que o discurso sedimentado ao longo do tempo, que a loucura é um conceito historicamente construído, e que os loucos são aqueles que não se encaixam no sistema.
Mas, na verdade, penso em Foucault por conta da minha história de vida, afinal, em minha curta existência tive a oportunidade de presenciar algumas das importantes mudanças na forma de como a sociedade lida com a loucura. De fato, em minha infância, na nossa provinciana Macapá, o louco era um caso de polícia. Em uma época em que crianças de sete ou oito anos iam para a escola caminhando, a principal instrução de defesa que ouviam dos pais era sobre correr pra valer tanto que vissem os conhecidos loucos da cidade, como o “cientista” ou o “rubilota”. E havia realmente um deles que costumava correr agressivamente atrás das pessoas.
Hoje consigo caminhar na orla ao amanhecer, tropeçando aqui e ali em algum dos loucos que transitam diuturnamente naquele local. Não tenho medo deles e sim de pessoas “normais” que queiram tomar meu celular para trocar na “boca de fumo” mais próxima. O que aconteceu? Mudaram os loucos ou mudamos nós?
Acho que mudamos e bastante. Quando fui estudante de Psicologia estagiei em um hospital psiquiátrico público, onde tive oportunidade de conhecer o último paciente lobotomizado do Pará. Ainda era bem visível a marca da cirurgia feita no lobo frontal do cérebro com o objetivo de retirar dele a agressividade, mas isso o deixou incapacitado para a vida nas ruas, já que todo mundo precisa de um mínimo de agressividade para poder se defender. Uma situação que guardava alguma semelhança com que se passa no romance de Burgess (1962), mais conhecido por conta do filme “Laranja mecânica”, de Kubrick (1971), onde o personagem principal é “curado” de sua agressividade patológica por meio de um processo de condicionamento, mas apenas deixa de ser o algoz para tornar-se vítima.
Nessa época, ainda era diretora do Hospital a Dra. Carmem Rota, a mesma que sofreu agressões físicas de um paciente quando determinou a abertura da cela em que ele se encontrava preso há anos, mas mesmo assim permaneceu firme em suas convicções de transformar o “Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira” de um hospício-masmorra em um hospital de fato, onde as pessoas saíssem curadas, e seu maior esforço era no sentido de obter a ajuda da família e dos amigos do paciente, para que eles não perdessem o convívio em sociedade. Essa admirável médica era a mesma que entendia que precisavam eliminar o tratamento a base de eletrochoques, mas reconhecia que o preço do tratamento com os caros medicamentos da época justificava a sua manutenção. Afinal, com o eletrochoque o paciente superava a crise em questão de dias, enquanto que com as drogas isso levava meses (Ora, na base do choque, até eu ficaria “normal” rapidinho!).
Hoje ainda se ouve as pessoas comentando sobre o risco que representa o trânsito de loucos pelas ruas, reclamando que essa mudança (na qual o pensamento de Foucault teve papel fundamental) foi para pior. Ocorre que a proposta de mudança na lida com os doentes mentais, conforme o seu embasamento teórico, é de tratamento ambulatorial do paciente em sociedade. Isso significa que ele não precisa se institucionalizado e muito menos preso, mas precisa tomar regularmente sua medicação. Assim, não deixa de receber seu necessário tratamento médico e não perde a convivência social essencial para a sanidade mental de qualquer pessoa. Óbvio!
Mas, o que ocorre na prática? Vemos pessoas cuja família assume a responsabilidade com o cuidado, e o doente mental consegue um mínimo de felicidade pessoal para conviver no meio dos ditos “normais”, mas vemos também uma quantidade inquietante dos ditos “loucos” perambulando andrajosos pelas ruas, causando aqui e ali distúrbios no trânsito, algum incômodo sem consequências, mas que não ocorreriam se eles estivessem sendo medicados.
Aí o cerne da questão. Se o pressuposto para o tratamento é, basicamente, juntar o convívio social e familiar com a medicação, como nós podemos esperar que o doente mental, ele mesmo, por sua própria vontade, se dirija ao sistema ambulatorial público para receber sua medicação? Se assim o fizesse não estaria louco. Como isso não está acontecendo, é de se concluir que o primeiro fator continua falhando. Ou o doente não tem família e nem amigos, ou essa família e esses amigos não têm condições de fornecer o apoio e suporte para o sucesso do tratamento. Menos mal que agora pelo menos não estão simplesmente presos, como já foi no passado.
Quando era estudante aprendi que os critérios para distinguir o comportamento anormal do normal eram basicamente: o critério estatístico (se o meu comportamento está dentro da média do comportamento da população onde vivo, sou normal); o social (se meu comportamento não agride a sociedade na qual convivo, sou normal); e o do mínimo de felicidade pessoal. Esse último é o mais interessante e o mais importante. Sendo assim, posso concluir que, pelo menos a maioria dos loucos que vejo perambulando pelas praças satisfaz o último critério. Afinal, quem sou eu para dizer que você, que vive atormentado com uma maré de boletos para pagar mensalmente é mais feliz que qualquer um deles?
Que reflexão linda! Parabéns mesmo. Quero acompanhar suas publicações. Muito oportuna, realmente. Afinal o que fazemos é como ainda tratamos nossos “loucos”. Em tempo, eu tb vi as atrocidades q faziam no hospício de Belém, morava lá na época. Eu tb vi uma louca presa em Macapá. Sem processo, sem pena a cumprir. Simplesmente trancada pq não havia ninguém para tratá-la. Parabéns mesmo