Por Cesar de Alencar
Sócrates, ao que tudo indica, fez uma descoberta valiosa sobre o comportamento humano. Dizia ele que ninguém, quando faz algo, faz o mal voluntariamente. O que isso quer dizer? Quer dizer que todo ser humano age em vista do que acredita ser o melhor. E, por isso, só poderia fazer algo de mal se fosse obrigado por fatores que independem de sua vontade.
Refletir sobre essa afirmação é, por certo, a primeira grande tarefa do campo de estudos que em filosofia chamou-se Ética. O termo vem do grego éthos, que significa o caráter moldado pelo hábito e pelo costume, certa disposição de alma para se comportar de um determinado modo, influenciada, sobretudo, pelas ações cristalizadas com a rotina e o pensamento. Na Ética, está em questão o modo pelo qual as pessoas escolhem fazer certas coisas, sempre levando em consideração a cultura como determinante para a criação do caráter.
Quando Sócrates descobre o fundamento da disposição que temos para tomar decisões, ele estava fundando esse tipo de estudo. Porque não faz parte da Ética, a princípio, a maneira pela qual o humano age condicionado ou determinado, sobretudo no que diz respeito à natureza e à biologia. Para a Ética, nós fazemos escolhas com base em concepções, e essas orientam nossas ações frente àquilo que reputamos ser o melhor para a nossa vida.
Essa consideração acerca do que nos aparece como o melhor a ser feito é, ao que se vê, irresistível. Você pode tentar imaginar uma situação na qual suas escolhas estariam baseadas no fim de fazer o que fosse pior, e ainda assim você encontrará como resposta a conclusão de que isso jamais guiará suas escolhas a menos que você o encare como algo bom e digno de ser feito, em alguma medida.
Podemos, com isso, entender porque, para Sócrates, o maior dos males é a ignorância. Afinal, se nossas escolhas se fazem orientadas por nossas concepções acerca do que é o melhor a ser feito, não saber se o que concebemos é ou não de fato o melhor a ser feito pode resultar em toda uma vida de ilusão e engano. A questão da existência, e da vida que levamos, está posta em primeiro plano quando se trata de Ética, e para isso a avaliação do nosso saber é imprescindível.
Agora se pergunte – como saber o que é bom de verdade, se ignorarmos a mais fundamental das necessidades humanas, a de saber o que é o melhor? Naturalmente, o que é desejável a um não o é para outro, e as pessoas desejam coisas distintas e por isso têm vidas distintas, sendo diferentes entre si. Mas a postura ética que nos é comum deve se iniciar por uma consciência de que escolhemos com base em concepções, ainda que mal saibamos de onde elas vieram.
Estar ciente desse problema faz o ser humano buscar para si uma maior clareza quanto ao que ele deseja, quanto ao que verdadeiramente lhe fará bem e ao que, ao contrário, ainda que se mostre como um bem, acabe não sendo bom ao final. A postura ética, nesse sentido, depende fundamentalmente de uma busca pelo saber – tarefa a que todo filósofo se dedica.
Mas não deveria ser uma tarefa apenas do filósofo. É certo que nem todo mundo tem a coragem e disposição para sentir a angústia da incerteza, causada pela iniciativa de avaliar nossas concepções. Mesmo Descartes, que na História da Filosofia é o exemplo mais retumbante de alguém disposto a se pôr em dúvida sobre tudo, formulou uma moral provisória para si, com o intuito de guiar suas ações enquanto buscava convicção maior para suas concepções.
Parece que, enquanto seres que agem e que precisam tomar decisões diárias, não podemos esperar ter certezas sobre tudo para tomarmos uma decisão. Fora isso, para Aristóteles, essa certeza buscada por Descartes era inalcançável. O âmbito da atuação humana é movediço e perigoso, raramente estamos convictos de fazer o que é realmente certo e bom. Já que estamos em um mundo onde tudo é relativo, o que significa dizer que nada é absolutamente bom ou mal, não é possível ter certezas na esfera dos dilemas humanos.
Com a descoberta socrática a que aludimos, podemos obter ao menos a orientação sobre aquilo que nós, seres dotados de éthos, desejamos com certa constância, por meio de hábitos que quase sempre não são conscientes, mas que tendem a indicar aspectos de nossa personalidade à medida que refletimos sobre as concepções pelas quais assumimos certas escolhas como melhores. Esse olhar debruçado sobre nós e nossas escolhas não é, obviamente, todo o percurso de investigação almejado pela Ética – mas é seu ponto de partida pessoal e existencial.
A condição existencial da alma humana – ser condicionada a escolher sempre o que lhe parece o melhor a ser feito – soa, no fundo, como negativa – ou seja, não ficamos sabendo, por meio dela, o que de fato é o melhor a ser feito, mas apenas que, na hora de agir, optamos em fazer o que reputamos ser melhor. Mas se não alcançamos com isso o que é bom de verdade, já estamos de posse do que há de mais próximo à verdade sobre o assunto. Afinal, não é a maior das ignorâncias ignorarmos aquilo que já deveríamos saber?
*O presente texto é parte integrante do livro Lições Socráticas, que pode ser acessado pelo link: https://www2.unifap.br/editora/files/2021/07/licoes-socraticas.pdf
Para refletir
Um dos dilemas morais que se tornou rotineiro em uma vida mergulhada em redes sociais, como a nossa, diz respeito aos impactos negativos da cultura do cancelamento – uma variante tanto do problema do acesso e da checagem de informações quanto do paradoxo da tolerância, do filósofo Karl Popper: afinal, deve-se, de todos os modos possíveis, impedir que alguém tenha liberdade de dizer algo depois de ele ter dito algo que não deveria dizer?
Os casos recentes do apresentador Monark, que deixou de fazer parte do FlowPodcast após assumir a posição em defesa da existência de um partido nazista no Brasil, e do cantor Nego do Borel, expulso do programa A fazenda 13 sob acusação de assédio, são alguns das centenas de casos que ilustram a violência com que se pode infligir punições a quem, eventual ou sistematicamente, tenha ultrapassado os limites do bom senso.
O que rapidamente viraliza nas redes e mídias sociais, contudo, raramente passa pelo cauteloso crivo da checagem das informações. Um vídeo editado ou uma fala retirada de contexto são suficientes para desencadear um fenômeno de linchamento que ecoa os rituais de bode expiatório, tão amplamente descritos como rotineiros pelos estudos de antropologia – com o agravante de, agora, qualquer um poder ser a vítima escolhida da sede de vingança da massa digital. Isso mostra que a cultura do cancelamento, ainda que apele ao anseio humano de vingança coletiva contra algo que lhe fere e adoece, tende a escapar da tarefa, também demasiado humana, de ponderar os discursos e de avaliar os fatos. Seguir a manada pode dar uma sensação boa de justiça, mas a sensação nem sempre corresponde ao que esperamos que seja o verdadeiramente justo.
Diante disso, nossa primeira reação deveria ser a da não-ação: ou seja, é preciso, antes de assumirmos o ataque ou a defesa de alguém ou de uma causa, sabermos quais são os fatos e as ideias ali implicados. Não seguir simplesmente o calor do linchamento coletivo aparece, socraticamente falando, como a ação ética mais adequada. É preciso saber o que está em jogo, porque ao invés de agirmos com justiça, poderemos cometer a pior das injustiças – a que elege uma vítima inocente para descarregar nossa sede de vingança.
Naturalmente, a posição que impede, de todas as formas possíveis, alguém de poder dizer algo, porque algo que ele disse não pode ser tolerado, é tão ou mais intolerante que a fala intolerável. Existe responsabilidade jurídica pelo que se faz ou se diga, mas o cancelamento virtual procura fazer justiça com as próprias mãos. Todos se sentem bem ou mal justiceiros em luta pelo bem comum – sem perceber que o bem comum é, sobretudo, fundamentado na tolerância do outro como digno do mesmo respeito pelo qual espera ser tratado.
É por esse motivo que a filosofia, desde a descoberta socrática, procura mostrar que nenhuma atitude é eticamente válida se não for exercida com ponderação e análise. O acesso à informação pode parecer fabuloso, e de fato o é, mas ele demanda ainda mais nosso esforço para não crermos em tudo o que é dito e editado. As opiniões, sendo sempre relativas, exigem que se saiba avaliá-las bem a fim de poder tomar as melhores decisões. Se raramente estamos certos do que devemos e deveríamos fazer em muitas situações da nossa vida, ter tanta certeza assim sobre outras vidas parece insensatez.