Geovane Rogers C. Nascimento
DESMEDIDAMENTE
O homem, como um ser social, inevitavelmente, faz parte da espécie que mais mede e pesa no planeta. Nesse contexto, é notório que não podemos nos dar ao luxo de negligenciarmos tal fato, pois avaliar possibilidades parece mesmo ser nossa sina. Assim, aquele que nada mede, vive irremediavelmente sob a medida dos outros. O que nos leva a um questionamento importantíssimo: como saber então, se as medidas que fazemos do mundo a nossa volta são, em última instância, as mais favoráveis ao desenvolvimento de uma vida plena e justa?
Nesse sentido, um velho eremita, há décadas recluso em sua gruta no alto do monte, depois de meditar incansavelmente, medindo e avaliando os prós e contras daquilo que imaginava já ter compreendido sobre a vida e o mundo e, até mesmo, sobre coisas que sequer sua trena era capaz de aferir, resolveu assim do nada, dar um pulo até o mundo civilizado. Não, não pensem vocês, que foi para dar um trato na barba; ou quem sabe até, degustar aquele sorvete despreocupadamente, após tanto tempo no isolamento. Não vamos nos iludir, pois bem sabemos que esse tipo de gente não se prende a coisas desse tipo, não é mesmo?
Ora, e o que teria levado então o pobre velho a regressar a este mundo, visto assim por ele tão indigno e desmedido? É que, tragicamente, ao invés do coitado ter encontrado paz e tranquilidade em seu retiro espiritual, o transmundano se via mesmo era diante de um paradigma infernal. Pois imaginem vocês que quanto mais ele tentava fugir do mundo, mais ainda o mundo se apresentava a ele como um terrível inquisidor a questioná-lo, como se o infeliz não passasse apenas de um reles herege maldito, com o intuito único de defecar no próprio mundo. Parecia mesmo uma luta inglória, essa do velho da trena moral.
Mas, ao fazermos uso das mesmas ferramentas lapidadas pelo confuso ermitão, onde a medida e a desmedida são vistas como chaves essenciais aos caminhos que levam ao céu, ou ao inferno, podemos dizer então, que o pobre homem, ao se despir das coisas do mundo e fazer de refúgio uma gruta, na qual a máxima basilar do Oráculo de Delfos “conhece-te a ti mesmo” infelizmente não habitava, findou levando consigo, indubitavelmente, tudo aquilo que mais queria ter deixado para trás, haja vista ser praticamente impossível fugir do mundo sem que se leve este como bagagem na mochila. Diríamos até que é como tentar fugir da própria sombra em um belo dia de sol a céu aberto.
O que nos leva a concluir, a partir disso, que a situação do protótipo de santo não deixava mesmo de ser icônica, pois se via grávido do mundo, sem poder purgar ou parir o rebento. Ah! Quanto sentido faz agora o Negro Drama apresentado pelos Racionais MC’s, quando o Mano Brown diz que “o dinheiro tira um homem da miséria, mas não pode arrancar de dentro dele a favela” e que “a alma guarda o que a mente tenta esquecer”? É, parece mesmo que determinadas coisas coexistem tão intimamente associadas umas às outras, que estão fadadas a vagar por toda a eternidade de mãos dadas. Pobre velho da trena, com todo aquele paraíso tão belamente idealizado, mas miseravelmente, sem conseguir desvencilha-se do inferno interior que carregava em suas próprias entranhas.
Então, meus caros, qual a exata medida que leva o homem do cárcere a liberdade ou vice-versa? Será que esta tênue medida, não pode estar apenas a uma ideia de distância? Será mesmo que estamos fadados a, desgraçadamente, só descortinarmos os enigmas do mundo e da vida a partir das tais pílulas, ficticiamente apresentadas em Matrix? Nosso esquelético amigo eremita, por exemplo, não conseguiu compreender ainda que um santo, inexoravelmente, é construído artesanalmente a partir da mão-de-obra-bruta dos “não santos”, e que a eternidade, dependendo da aferição que se faça dela, pode ser apenas uma ilusão, ou até quem sabe, o único caminho destinado a todos, independentemente do grau de santidade ou não.
Assim, diante de tamanha desmedida, não me perguntem mais sobre o que teria acontecido com nosso desorientado ermitão. Pois não sei se perceberam, mas ele nunca foi o fiel da balança em nossa prosa, quando muito, um simples transporte necessário. Cabe aqui lembrar Platão, que em um de seus discursos mais extraordinário, cujo fio condutor tem como tema principal a imortalidade da alma, onde Fédon, ao narrar o contexto dos acontecimentos sobre a morte de Sócrates, nos convida a refletir também sobre a temperança que devemos buscar com questões como vida, morte, verdade, prazeres, vaidade, justiça, conhecimento etc.
Portanto, a cicuta meus caros, como transporte fatídico, só conseguiu levar do homem, aquilo que ele possuía de orgânico e que inevitavelmente, se deterioraria mesmo um dia, porque as belezas expostas por ele, sobre o contexto que compõe as paisagens da vida e do mundo para além do carbono, essas, continuam vivas e pulsantes a germinar pesos e medidas, desmedidamente.
Como? Misericórdia! Vocês ainda alimentam a infeliz expectativa, sobre uma possível apresentação aqui, das tais formulas capazes de orientar o homem na condução da vida? Sinto muito decepciona-los sobre essa questão, dado que tal manual é de uma singularidade impossível, já que a forma como cada indivíduo lida com a própria vida e compreende o mundo a sua volta, é totalmente distinta uma da outra, não sendo possível assim, uma única medida capaz de orientar a todos de uma só vez.
Então, infelizmente, teremos que nos contentar com as chaves que foram distribuídas ao longo de nossa viagem, cabendo-nos em última instância, fazermos nossas próprias aferições, no sentido de abrirmos as portas. Mas, sem esquecermos em hipótese alguma, que para cada porta que se abre, consequentemente, outras tantas se fecham. Ou seja, a liberdade conseguida em um instante, pode muito bem caracterizar também a prisão no momento seguinte.
E, principalmente, que ao fazermos uso de nossas trenas, ao avaliarmos as justezas de nossas relações com a vida e o mundo, que não esqueçamos também de observar onde estão alicerçadas as verdades das quais nos alimentamos e que, inevitavelmente, serão o fiel da balança das tais trenas. Pois nada pode ser pior àquele que busca uma vida justa, de que edificar sua zona de conforto justamente sobre o desconforto de outrem.
Nesse sentido, na Apologia de Sócrates, o bom filósofo nos orienta “que uma vida não examinada não é digna de ser vivida”. Isso dito, tanto a Apologia de Sócrates quanto o Discurso do Fédon, ambas, obras de Platão, além de nos trazerem inspiração para o trato que devemos ter com a vida, também contextualizam muito do que acabamos de expor.