Quando falamos em ditadura nos vem à mente as imagens mais comuns de regimes ditatoriais, ou as que freqüentaram a mídia no passado recente pela sua extrema crueldade, como o Khmer Vermelho no Camboja ou Idi Amin em Uganda, ou então as mais comentadas atualmente, como a da Coréia do Norte, que parece ter tido como cartilha o famoso “1984” de George Orwell. No Brasil, no entanto, dado o recente embate político entre direita e esquerda, a ditadura civil-militar pós-64 foi vivificada, ora como um fantasma a rondar a democracia, ora como salvação da pátria, com movimentos saudosistas da ditadura que ninguém que viveu esse período sequer imaginaria ver ressurgindo.
Na ditadura pós-64, o aspecto violento que hoje é o foco de sua rejeição, na época aparecia como algo distante, que só atingia quem se envolvia com a luta armada. Na verdade o que o povo sentia mais de perto e que mais incomodava era o peso cotidiano da ditadura, o que acontecia no dia-a-dia, nas situações mais absurdas contra as quais não se podia reagir, e que hoje pouco se fala. Se podia apenas inventar piadas, tipo a do sujeito que estaciona em cima do pé do outro na parada de ônibus, e o dono do pé pergunta calmamente: o senhor é militar? Diante da negativa, o primeiro reage aos gritos: então sai de cima do meu pé, seu FDP!!!
O saudoso Ruy Barbosa afirmou que “a pior democracia é preferível à melhor das ditaduras” (Discurso ao Senado, 1911). Em contrapartida, Aristóteles, em sua obra “Política” (Séc IV aC), afirmou que o melhor das formas de governo é a democracia, e a pior não é a tirania, mas sim a corrupção da melhor, que é a demagogia. Winston Churchill teria dito que a democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as demais (discurso ao Congresso Americano, 1943).
Parece estranho afirmar isso, mas o fato que os três tem suas razões. Isso se dá basicamente por dois motivos: o primeiro é que nem todas as democracias são iguais e tampouco as ditaduras, justamente porque as sociedades, as culturas e suas histórias e, consequentemente, o modo de ser de um povo nunca será igual a outro. Eu poderia aqui utilizar a terminologia de Erich Fromm, que é “caráter social” (“Medo à Liberdade”, 1941), ou o termo “mentalidade”, como é utilizado por G. Bateson – estado de espírito comum a um dado grupo social (Naven, 1958), mas fico com “modo de ser de um povo”, por ser mais próximo da linguagem cotidiana.
O segundo motivo é ainda mais simples, engloba a desonestidade intelectual, a vaidade e os interesses individuais, além dos de classe, algo que é bem visível nos muitos processos gradativos pelos quais um líder heróico, de direita ou de esquerda, vai se embriagando com o poder e se tornando um déspota, conforme a história registra e a literatura mostra muito bem.
Bom, mas já é tempo de voltar com esta reflexão para a nossa realidade brasileira, amazônica, amapaense, que é o que interessa nesse momento. Entre as muitas ilusões de nossa vida de estudante universitário, havia aquela de imaginar que, com a volta da democracia e a participação popular nas decisões, os corruptos seriam banidos dos cargos de mando da sociedade brasileira.
Nem chegamos perto disso. A Nova República já nasceu com a cara da velha, e rapidamente descobrimos a demagogia, um sistema de uma violência bem mais complexa que a da ditadura porque tem na burocracia a sua aliada mais eficaz. Max Weber dizia que a burocracia moderna não é apenas uma forma avançada de organização administrativa, com base no método racional e científico, mas também uma forma de dominação legítima. O problema é quando, nessa estranha imagem de “poder de ninguém” (a demagogia burocrática), os valores se deterioram e o poder se pulveriza (Foucault, A microfísica do poder, 1977), parecendo emanar de uma entidade sinistra.
Os antigos ainda devem lembrar um episódio que ocorreu em Macapá, nos tempos da ditadura, quando um general governador determinou que a CEA fechasse seu atendimento ao público, porque era desnecessário, já que no regime militarista todo mundo fazia tudo certinho. Um advogado, entretanto, indignado por ter uma demanda que deveria ser resolvida com facilidade em um simples atendimento, e por não ter essa possibilidade, recorreu à Justiça, que determinou à CEA a solução do problema. Ainda me lembro do pronunciamento do general sobre o caso, pela Rádio Difusora, dizendo que aquilo tinha sido um exagero, que os militares estavam organizando o país, e pessoas assim atrapalhavam. Era uma ditadura, embora os militares defendessem que era uma democracia, não uma democracia plena, mas, para eles, uma democracia.
Hoje olho para a gigantesca fila no atendimento da concessionária de energia elétrica e de água e esgoto do Amapá, tendo nas mãos duas faturas de fornecimento de água, em dois CPFs diferentes, para a mesma casa, um da conta antiga e outro de uma conta nova, produzido em um recadastramento que tinha o objetivo de reorganizar o cadastro, com dois comprovantes de atendimentos anteriores onde o erro da companhia estava reconhecido (cadastro em duplicidade), e mais um papel amarelo com o aviso de corte do fornecimento, ao argumento que uma das contas estava inadimplente com o pagamento. Um erro absurdo, como se a companhia fosse esquizofrênica (ou pouco se importasse com o consumidor).
Olho em volta e vejo trabalhadores parados, perdendo um dia de trabalho para resolver pendências que foram causadas e por isso responsabilidade da concessionária. Aqui e ali alguém muito bem vestido pede para falar com alguém lá de dentro da área fechada (e ele sabe o nome completo!), e em poucos minutos se retira com seu problema resolvido, enquanto a garota pobre sem um das pernas continua lá, aguardando a sua “prioridade” no atendimento. Vejo ainda um cartaz que diz “fale com o presidente”, mas não esclarece como. Vou dar uma volta lá fora e vejo os postes com horríveis contadores de energia neles pendurados. Estes foram instalados pela Concessionária quando ainda era estatal, ao argumento que era o melhor meio de evitar os furtos de energia. O consumidor (que é a parte fraca na relação de consumo) está sempre sob suspeita. A fornecedora gasta uma fábula para espalhar os monstrengos por toda a cidade, para depois descobrir que o sol e a poeira dificultam a leitura. As contas começam vir em valores desproporcionais, ou seja, o consumidor, como sempre, está assimilando o prejuízo causado pela má gestão da concessionária.
Ninguém cobra a responsabilidade pelo prejuízo causado e a solução é privatizar tudo. Na empresa privada, em tese, a administração deve ser enxuta, garantindo o menor preço para o consumidor. O resultado, porém, é o oposto. As contas de energia elétrica aparecem com valores totalmente desproporcionais ao consumo médio dos aparelhos elétricos que o consumidor tem em sua casa. Como uma balconista que ganha salário mínimo pode sobreviver pagando metade do seu salário em energia elétrica? Recorrer ao Judiciário torna-se inútil tal o número de demandas. Oscilações na rede que queimam aparelhos elétricos caros. Contas absurdas. Falta de água e de energia rotineiras. Quem acaba assumindo todos estes prejuízos. O consumidor, claro!
Semana passada ocorreu um esboço de reação. Consumidores, indignados, realizam um protesto, ainda em pequeno número para mobilizar nossos representantes no Congresso. Aqui e ali um blog, um site, tenta mostrar como estamos sedo espoliados. Mas ainda é muito pouco. Precisamos voltar (autenticamente) a um conceito que nos fez fortes no final da ditadura pós-64, a sociedade civil organizada.
Mas, por que é assim? Por que as empresas concessionárias de um serviço público tão essencial desviam-se totalmente de seu objetivo, e começam a agir como o bolso dos consumidores fosse uma espécie de tesouro inesgotável?
A resposta está no pensamento de Ronald Dworkin (em “A raposa e o porco-espinho: justiça e valor”, 2011), que basicamente afirma que o Estado Democrático de Direito é garantido por meio da aplicação conjunta de dois princípios, o da igual consideração por todas as pessoas, independentemente de cor, credo e condição social; e o da responsabilidade e do direito que cada pessoa em de escolher o que fazer de sua vida. Ambos se resumem no respeito que o Estado deve ter pelos seus cidadãos, fora disso qualquer democracia será sempre “meia-boca”, seja ela liberal, burguesa, ou popular.
Entretanto, para que tenhamos um estado que respeite os seus cidadãos-contribuintes, temos que votar em políticos, de direita ou de esquerda, que não abram mão dos valores éticos, que deveriam ser a base da política. Nesse sentido, precisamos mais da Filosofia Política (reflexão filosófico sobre o sentido último da política, sobre como ela deveria ser) que, para alguns, deixou de ser importante quando surgiu a Ciência Política (estudo científico da política como é ela é). Enfim, o fato e que ambas são e continuarão sendo essenciais, se quisermos continuar sonhando em viver numa sociedade mais justa.