A Revista das latinidades ISSN 2527-113X
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Pedro Cabano, por João Wilson Savino Carvalho
Pedro era jovem, adolescente mesmo, e isso talvez explicasse a imensa curiosidade que tinha sobre o movimento cabano, chegando mesmo próximo de ter, pelos sanguinários revoltosos, o que se poderia classificar como uma inexplicável admiração. Ademais disso, a vida em sua cidade natal, às margens do rio Mutuacá, era o próprio retrato do tédio.
Não que Nova Mazagran, ou simplesmente Mazagão, fosse uma cidade sem perspectivas de trabalho para um jovem como ele. Na verdade, era até uma vila amazônica bem próspera, e a sua produção de frutas e legumes já até abastecia os mercados de cidades como Belém e Vigia.
Mas o fato é que o avanço desse movimento do começo do século XIX estava inquietando todo mundo da cidade, pois já havia dominado Belém, a capital da província, e Santarém, a cidade mais importante. E agora ameaçava toda a região das ilhas da foz do rio Amazonas, de onde provavelmente partiriam para dominar Macapá e depois a tranquila Mazagão.
Só que, diferentemente das outras cidades da província, Macapá e Mazagão eram cidades formadas por pessoas vindas de colônias portuguesas. Por isso, mesmo após a independência do Brasil, tinham mais proximidade com o governo imperial brasileiro, cujos membros faziam parte da dinastia portuguesa, do que com a população de tapuias que mal sabia falar o português e, em uma inexplicável revolta, tentava dominar completamente a província, confrontando-se com a unidade nacional brasileira.
Pedro sabia de tudo isso porque gostava de ouvir. E ouvia muito, principalmente quando percebia aquela intrigante admiração pelas conquistas cabanas na fala de alguns intelectuais mazaganenses. Mas admiração mesmo tinha pelo padre, que tudo explicava usando palavras simples e ao alcance de Pedro. E, por conta disso, sentia muito medo do que poderia acontecer com os dirigentes da cidade, caso fosse dominada pelos cabanos, embora fosse ele próprio, em aparência física e sentimentos, um perfeito tapuia, tal como os demais moradores.
Mas agora se sentia muito orgulhoso: fora chamado pelo Padre para remar pra ele, que desejava conhecer o tal esconderijo de cabanos, totalmente destruído por um destacamento de soldados do governo da província. Tinham vindo de Macapá, especialmente para atacar os cabanos, e retornaram sem dar qualquer satisfação às autoridades de Mazagão. O padre era radicalmente contra a Cabanagem, mas, como católico, não podia permanecer insensível aos rumores de um inútil massacre.
Pedro remava com desenvoltura e vigor, tal como os outros jovens que o Padre tinha arregimentado para a empreitada de subir o rio até o local do combate. Mas, quando avistou o que teria sido o resultado do ataque das forças imperiais a uma base dos cabanos, automaticamente diminuiu o ritmo. Seu coração apertou de pronto. Havia cadáveres espalhados, de homens, mulheres e crianças, com uma nuvem de urubus disputando seus restos. Nenhum deles usava uniforme. Pelos fartos cabelos, dava para concluir que eram todos tapuias. E pelos objetos que ainda se podia ver no que sobrou da pequena vila, eram moradores e não ocupantes militares.
Parecia bastante claro o que tinha acontecido ali: um mero massacre de uma vila de tapuias, movido pelo ódio e desprezo pela vida daqueles que o governo da província via como seres apenas quase humanos, mas sanguinários e desprezíveis. O próprio padre, que costumava se referir aos tapuias como “burros, porcos e preguiçosos”, agora parecia não conseguir conter as lágrimas.
– Pra que tudo isso? Eram todos pescadores… Nem sequer tinham armas para serem confundidos com cabanos… Por que os soldados fizeram isso? Quem autorizou tamanha monstruosidade?
O retorno foi silencioso e triste, e a chegada à cidade, conflituosa e preocupante. Parecia que as autoridades locais já sabiam, e temiam o posicionamento que o padre tomaria a respeito. Estavam preparados com argumentos e autoridades, não só imperial, mas também eclesiástica.
Como era de se esperar, o padre foi escorraçado da discussão e Pedro apontado como o elemento dos cabanos dentro da cidade. Embora dominasse a língua culta muito bem e fosse conhecido pela sua capacidade de argumentação, Pedro tinha características físicas de tapuia e, pior, trazia algo do temperamento desse povo.
Assim, não foi de todo estranho que, diante das absurdas acusações de pertencer ao movimento cabano, Pedro tenha quedado quieto, calado, apenas mirando as autoridades mazaganenses com aquele olhar insondável, próprio de sua etnia. Parecia que seu destino estava selado.
Mas o padre não se acovardou e partiu para o contra-ataque. Foi à residência sacerdotal e voltou com as vestes eclesiásticas de gala e com todos os paramentos que pôde colocar. À frente de um séquito de beatas e coroinhas, enfrentou os militares, que então não mais se atreveram a tocar nele. O debate, entretanto, havia mudado completamente de rumo. Agora já não se discutia o absurdo massacre da vila de tapuias, mas sim a vida de Pedro.
Arrebatado das mãos dos soldados por uma veneranda senhora de pele alva, olhos azuis e cabelos de algodão, que no alto de sua autoridade de descendente de um nobre que lutou pelo rei de Portugal ainda na Mazagran africana, levou-o direto para a proteção da casa de sua família, de onde ninguém se atreveria a tirá-lo.
Tratado como uma criança, Pedro acabou por dormir, enquanto o Padre, sozinho, acuado pelos militares, e abandonado pelos mais antigos moradores da cidade, era agora acusado de impedir a defesa da cidade ante o avanço cabano. Para completar, chegaram a Mazagão as notícias de mais um massacre promovido pelos cabanos, agora em sua passagem pela cidade de Óbidos, onde não só as autoridades provinciais, como todos os moradores antigos, teriam sido arremessados, de mãos e pés amarrados, do alto de um precipício. Falava-se de muitas mortes cruéis, de estupros e saques, e toda sorte de barbaridades era atribuída aos revoltosos em fúria sanguinária.
Pedro acordou antes do amanhecer, com a voz alterada da irmã de sua salvadora:
– Precisamos tirar esse menino daqui, urgente. O padre foi expulso de Mazagão, e vai ser colocado a pulso no último barco que sai da cidade rumo a Gurupá, que ainda está nas mãos dos soldados da província.
– Que último barco? Por que é o último? Que está acontecendo? Era sua salvadora que exigia maiores explicações.
– Porque eles vão derrubar árvores dos dois lados da margem do rio para impedir qualquer possibilidade de os cabanos chegarem a Mazagão de barco. Quando eles terminarem, ninguém entra, ninguém sai. E estão dizendo que o padre amaldiçoou a cidade. Que Mazagão vai se acabar aos poucos.
– Mas, se eles derrubarem mesmo as árvores por sobre o rio pra formar uma barreira, o rio vai assorear, e aí Mazagão só poderá mesmo se acabar. Pedro não podia deixar de intervir na conversa.
– Mana, esse menino tem que sair daqui. Veja, ele não fala como uma criança. Como é que sabe dessas coisas? Ele é muito esquisito. Melhor tirá-lo daqui, mandá-lo pra longe, porque logo eles virão buscá-lo, mesmo dentro da nossa casa.
– É, se bloquearem o rio, ele tem que sair antes de o dia amanhecer. Chame o Gervaldo e diga pra ele pegar a canoa grande e levar esse menino para Gurupá! E então, dirigindo-se diretamente a Pedro: Vá com o Gervaldo, que ele é de confiança! Vá para Gurupá e dê um jeito de chegar a Belém, até lá a sua história já será conhecida e você poderá até ser recebido como herói!
Hesitou um instante e depois começou de novo a falar, mas em tom bem mais suave:
– Ah, Pedro, se os cabanos vierem tomar Mazagão, lembre-se do que fizemos por você.
– Lembrarei sim, Madrinha! Lembrarei sim! Sempre! A senhora é uma pessoa muito boa! Andou alguns passos em direção a Gervaldo, mas parou de súbito.
– E o padre, Madrinha? O que vai ser dele? – Não se preocupe com o padre! Ele sabe se defender. Vai ser levado a Gurupá e lá será entregue ao Bispo. Não vai acontecer nada a ele. Agora, com você, cuidado! Se for pego, com certeza não terão piedade.
Pedro chegou a Belém que, no ano seguinte, voltou ao domínio das tropas imperiais e, cabano ou não, ninguém mais ouviu falar dele. E nem mesmo do padre. E nem de Mazagão. Não se sabe se pela praga, se pelas doenças ou pelo assoreamento do rio, mas a Nova Mazagão, a reedição da orgulhosa Mazagran africana que Portugal trouxe através do Atlântico para a sua colônia no Novo Mundo, declinou tanto que mais uma nova Mazagão se fez necessária. E para distinguir da Nova Mazagão, esta foi chamada de Mazagão Novo.
Anos se passaram, décadas, um século e pouco. E mais uma ditadura se instalou no Brasil. E um dia, após uma visita, sob um sol escaldante, à cidade de Mazagão Novo pelo severo governador militar do então Território Federal do Amapá, disse-lhe o seu ordenança:
– Bom, então vamos, General, que ainda dá tempo para conhecer Mazagão Velho!
Diz a lenda que o velho general passou lentamente a vista em volta, contemplou aquela cidade que, em plenos anos sessenta parecia ainda imóvel no tempo e respondeu:
– Virgem Maria! Então ainda tem um Mazagão mais velho do que este?
João Wilson Savino Carvalho (Belém do Pará, 1955). Professor de Filosofia na UNIFAP, contista premiado em Barueri/SP, Macapá/AP e Ituiutaba/MG. Publicou “Da Vida e Da Sorte por 10 Contos” e “Psicocontos”. Participou da coletânea “Poetas, Contistas e Cronistas do Meio do Mundo”.