Eu gosto de falar da arte como forma de interpretação da realidade, logo, um dos tipos de conhecimento, ao lado da Filosofia, da Ciência, da Religião e do Mito.

Um artista capta a realidade de uma forma especial, aquela pautada na sensibilidade, tendo como ferramenta o seu talento. Não estou dizendo que é uma forma melhor ou mais eficaz que a do cientista, que tem como instrumento o método. Dizer que algo é especial significa que é diferente, e que merece atenção específica.

Entre todas as artes, segundo Hersch, a que mais se aproxima da Filosofia é a Música. E entre as artes, eu amo a literatura, que hei de lutar até a morte para que jamais se torne profissão, tal como a política, que me dói na alma ter-se tornado um trabalho, no sentido de meio de ganhar a vida (e como!), mas a música é especial.

É fácil explicar o porquê de tão temerária afirmativa, já que estou no campo da arte e não da ciência, e posso me expressar através da simples descrição de um caso: há dias estou com uma música martelando em minha mente. É uma composição de Sérgio Salles, feita a partir das últimas palavras de Fernando Pessoa: “Dá-me os óculos!”. Contam que, quando seu pedido foi atendido, ele já estava morto. Não sei se o fato é verdadeiro, lenda ou se ele fez literatura no último momento de sua vida. Mas também não é esse o ponto de foco, e sim a música.

Certamente é, no mínimo, inusitado que um moribundo peça os óculos na hora da morte, mas a composição adquire vida própria a partir de sua interpretação pelo próprio autor. É que a entonação dada à frase, no começo e no final da música, e isso é impossível de ser traduzido em um texto (ou, pelo menos, não no limite desta pequena crônica).

Não é o simples lamento de observar o mundo desfocado ou o mero hábito de um velho. Estaria ele sentindo que estava no limiar de uma nova fase e sentiu que precisava de seu fiel instrumento de visão?

Queria ele marcar que sua vida era a literatura, e isso não acabava com sua morte?

Quer saber? Ouça a música, não precisa ser necessariamente na voz de seu autor, já que um bom intérprete se mostra um grande hermenêuta dos sentimentos do compositor quando consegue viver a música a cada interpretação.

Temos grandes artistas no Amapá, e Sérgio Sales é um deles. Selecionado entre os contemplados com o prêmio de literatura “Simãozinho Sonhador”, vêm se dedicando a arte e a cultura amapaense já há algum tempo. E em um momento feliz de sua vida criou e nos brindou com essa música, que agora fica martelando em minha mente, criando intrigas com outras tão bem estabelecidas cognições sobre a vida e a morte.

E isso me leva a escrever. E isso nos leva a pensar. “Dá-me os óculos…”

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