O Espírito de Macapá.

João Wilson Savino Carvalho

Prêmio Confraria Tucuju/Prefeitura Municipal de Macapá, 2005

Ele apareceu para nós, ali, bem no meio da conversa. E não era uma aparição dessas esvoaçantes e lúgubres. Não, ele era forte, alegre, nítido e de contornos bem definidos, e nós o captamos de repente, quando conversávamos, eu e um amigo, também macapaense.

Tudo começou quando, distraidamente deixei escapar o quanto o passado do nosso Macapá feliz ainda estava presente na minha vida: “…E eu trabalhava numa banca de revistas na ponte da rua Cândido Mendes…”

Ponte na rua Cândido Mendes? Onde? Meu amigo me olhou intrigado. Sua expressão demonstrava que percorria mentalmente toda a extensão da rua, procurando, debalde, onde poderia existir uma ponte. E de fato, agora não existia mais.

É o cruzamento da Cândido Mendes com a Av. Mendonça Júnior… Ali era um igarapé que vinha serpenteando, não sei de onde… Era lá a ponte… Depois o igarapé ia abrindo devagar, da lateral da fortaleza até próximo do Hotel… Era ali que começava a antiga doca, não lembras mais?

Pronto, foi o suficiente. Quedamos perdidos nas lembranças. A colcha de retalhos de nossa infância, formada pelas canoas com suas velas de variados tons pasteis, todas enfileiradas ao lado direito do rio parecia até estar ali, bem na nossa frente. Depois eu soube que aquele tom era resultado de uma resina de madeira que os canoeiros passavam nas velas para torna-las impermeáveis.

E foi assim que nós nos reencontramos, eu e ela, junto à antiga Doca, ante o Rio Amazonas e com a sua eterna imponência. Era lá que eu, em cima da ponte, trabalhava desde cedo, como era apropriado a um bom garoto naquela época. Aliás, trabalhava é modo de dizer. Na verdade, cuidava de uma pequena banca de revistas, dessas que, quando fechadas, ficam menores ainda. E o meu cuidar era bem relativo. Tinha uns treze anos e adorava ler. Lia tudo, até fotonovela. Aguardava ansiosamente a chegada das principais revistas de informação geral, a Seleções, os quadrinhos, e, por fim, meio que clandestinamente, lia até histórias de amor.

Às vezes aparecia algum chato querendo comprar. Era despachado rapidamente. Mas nas mais das vezes, eu ficava cercado de parceiros, que solidários, liam uma ou duas revistas antes de comprar a mais barata. Talvez tenha sido por isso que, num dia triste, o dono resolveu fechar.

Mas meus melhores momentos surgiam exatamente quando havia uma canoa saindo da doca. Era fascinante… O canal que entrava no rio era caprichoso, e os canoeiros, embora o conhecessem bem, tinham que sair empurrando a canoa com longas varas de taboca, até um determinado ponto do igarapé, quando, de repente, enfurnavam as velas e saiam orgulhosamente, quase contra o vento, como que a enfatizar que, para viver, só dependiam de sua habilidade, ou de sua arte. E eu parava tudo para assistir isso. Aliás, eu só olhava para a frente, na direção do rio, jamais olhava para trás, na direção da cidade. Era lá, na saída para o rio, que estava a identidade da minha cidade.

Enfim, era uma ponte sobre um igarapé e que dava continuidade à rua do comércio, que, um dia, já havia sido conhecida como rua da praia. E, junto dessa ponte, uma doca, uma espécie de cais de barranco, onde  canoas encostavam direto na terra, trazendo de tudo, de palhas de ubuçú a peixe seco.

E claro, muitos caboclos ingênuos, vindos do interior, geralmente das ilhas do vizinho Pará. E, como não podia faltar em um cais, também os espertalhões.

Havia especialmente dois, com quem eu mantinha uma relação de admiração e desprezo. Viviam de pequenos golpes, sempre do mesmo estilo. Um cordão rebrilhante dentro de um embrulhinho de papel celofane vermelho, com o contraste dando uma impressão de maior brilho. Sempre havia um canoeiro para cair no conto. As vezes parecia mesmo uma presa que está sendo mundiada por uma cobra. O caboclo que, no começo parecia não dar a menor atenção à oferta, também não saia dali. Ficava fitando o vazio, e, de repente, como que hipnotizado pelo falatório do vendedor, parecia se sentir na obrigação de comprar. E comprava um cordãozinho de fantasia a preço de ouro.

Não sei bem se era a voz sussurrada, como quem está fazendo algo escondido, ou talvez o gestual, puxando do bolso o cordão embrulhado, e olhando sempre para os lados, como quem espera a polícia chegar de repente… Havia algo que fazia o caboclo pensar que era uma oportunidade que deveria obrigatoriamente ser aproveitada.

Afinal, o conto do vigário, em qualquer modalidade que seja, é sempre um golpe que tem como fundamento a ambição do otário.

Um desses espertalhões, apelidado “Giramundo”, era conhecido assim porque dizia ter rodado o mundo todo. Eu olhava para ele até com uma certa com inveja, que hoje sei descabida. É que eu o vejo, ainda hoje, circulando pelo meio dos camelôs, no centro comercial de Macapá. Vende antenas de televisão, acho. Sua cabeça, já bem branquinha, parece ter sido atacada por alguma estranha variedade de cupins, mostrando o couro cabeludo em vários pontos. E, por incrível que pareça, o desgraçado ainda exibe um ar feliz.

Era aquele um lugar completo. A par das casas de estiva, havia até uma espécie de barzinho, onde as pessoas se reuniam para conversar. Falavam em voz alta, e quem não era da região podia pensar até que estavam brigando. Falar mal do governo em altos brados, contar anedotas chulas, gritar com o moleque que estava se aproximando demais da água, eram mesmo coisas do temperamento dos macapaenses de antigamente, tal como intrometer-se até na dinâmica interna da vida das famílias dos compadres.

Era comum, no Macapá daquela época, um adulto chamar uma criança da vizinhança e ordenar que fosse lá na outra quadra, saber porque um determinado carro já estava um tempão parado na frente da casa do compadre Fulano. E ai do moleque que não obedecesse… Do mesmo jeito que todos os adultos tomavam conta de todas as crianças, como se fossem suas, as crianças deviam obediência a todos os adultos, como se todos fossem pais. O que vemos hoje, crianças passando com uma latinha de cola enrolada na camisa e enterrada no nariz, naquela época seria inconcebível. O moleque, mesmo que fosse desconhecido, levaria uma surra do primeiro adulto que encontrasse… Prós e contras de uma vida provinciana. Uma vida que se foi…

Mas houve um incêndio. Primeiro de um lado da rua. Depois outro, que levou todo o antigo casario. Depois foi o aterro que transformou em uma linda praça o local onde antes o igarapé entrava no rio. Esse igarapé, que se tornou um canal de geométrica perfeição, correndo bem no meio da Avenida, segue agora despercebido e comportado, como um moleque danado obrigado a andar de paletó, revelando-se só pelo odor.

A pitoresca doca deixou de existir. O estaleiro, nem lembro mais onde era exatamente. Tudo agora está simétrico e a ponte é então apenas um pedaço anônimo da rua, um cruzamento, como tantos outros. Só a fortaleza segue, imponente e indiferente às tantas vidas e sonhos que por ali passaram, seguidamente, talvez até repetidamente, sem sequer deixar rastro.

Sem dúvida, tudo está bem mais bonito, mas acho que falta algo.

É que as cidades têm um espírito, e, como nas pessoas, ele é elaborado com o tempo. E também como nas pessoas, com o tempo, esse espírito da cidade vai se quebrando aos pedaços. Quando aquela doca saiu dali, com certeza a cidade ficou mais urbanizada, mas perdeu muito de seu espírito.

Ela era parte da identidade daquela Macapá que gostava de ser provinciana, daquela Macapá da liberdade dos moleques que corriam descalços, com os pés na piçarra das ruas, daquela que foi perdendo devagar alguns de seus insignificantes espaços, como a Doca, a Mata do Rocha, o Poço do Mato, os Lagos do Pacoval, o Morro do Sapo…

Pedaços de Macapá que se foram como a infância, junto com o orgulho de nossos pés descalços, da mais pura liberdade.

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