João Wilson Savino Carvalho, SET/2020

Estávamos em meados de 1982, e eu, na época graduado em Filosofia e Psicologia, ensaiava minha primeira pós-graduação e lecionava Filosofia e Psicologia da Educação no saudoso Instituto de Educação do Amapá. A ditadura civil-militar ainda se fazia presente no Brasil, mas não era mais obrigatório denomina-la de “Revolução de 31 de Março”, embora ainda não fosse admitido chama-la de “Golpe Militar”. Mas não foi por isso que eu, jovem e praticamente um iniciante no magistério, e ele, um autêntico e embasado intelectual conservador, entramos em um debate na sala dos professores do IETA, no intervalo do recreio.

A Guerra das Malvinas (para ele, porque para mim era a Guerra do Atlântico Sul, enquanto que para os ingleses era Guerra das Falklands) estava em sua fase mais difícil. Os ingleses haviam mandado uma força-tarefa expulsar o exército argentino e retomar as ilhas, que desde 1833 detinham a posse, mas que antes disso faziam parte do território argentino. Os britânicos tinham levado o primeiro revés com o afundamento de uma corveta de alta tecnologia por um míssil argentino, mas já estavam preparando o desembarque nas ilhas e se prenunciava um combate absurdamente desigual, em termos de tecnologia bélica. Se, por um lado, era extremamente complicado para o Reino Unido levar ao extremo sul das Américas um contingente numeroso, por outro o poderio bélico deles apresentava uma superioridade brutal em relação ao argentino.

Lembro que um dos professores teria perguntado quem levaria vantagem em um combate corpo a corpo naquelas ilhas geladas próximo à Antártida, e eu respondi: os ingleses, com certeza! São soldados experientes e bem equipados, enquanto que os argentinos lutam com recrutas mal preparados. Aquilo foi suficiente para que ele, do outro lado da mesa e já irritado, disparasse:

– Não! De jeito nenhum! Deus não há de permitir que uma nação degenerada como a Inglaterra vença uma nação temente a Deus como a Argentina, que está nesse conflito para recuperar o que lhe é de direito!

Ele era um intelectual tradicional (no sentido gramsciano). Muito culto e religioso, chegava a ser venerado como um exemplo para a educação amapaense. Eu começava a angariar o respeito dos colegas do IETA porque tinha coragem de enfrentar o corpo técnico da escola, argumentando que os supervisores deviam atuar mais como apoio técnico aos professores do que como fiscais. Nesse contexto, rapidamente a atenção de todos os professores presentes na sala se voltaram para o debate que se iniciava. Senti a responsabilidade e retruquei no mesmo nível:

– Argentina tem tanto direito sobre as ilhas quanto a Bolívia tem sobre o Acre, ou o México sobre o Texas… Os habitantes das ilhas são todos ingleses, se for feito um plesbicito lá, eles com certeza vão preferir continuar sendo ingleses, a sofrer sob uma ditadura maldita como a da Argentina!

– Um plesbicito numa ilha tomada pela força vale tanto quanto um plesbicito num porta-aviões inglês. A Argentina é uma ditadura, mas lá se mantém o respeito. Não é essa degradação moral dos ingleses, que não respeitam nada! Dominaram o mundo e exploraram na África, na Ásia e nas Américas. Agora sua sociedade é rica, mas moralmente decadente…

As cabeças se inclinavam para um lado e para o outro. Quem ganharia o debate? Só que eu levava uma grande vantagem. Eu conhecia a obra do professor, enquanto ele nada sabia sobre mim. Por coincidência, ainda adolescente eu o ajudei a juntar folhas de papel datilografadas que o vento havia espalhado pela Praça Barão do Rio Branco. Ele, bastante grato, me disse que era o material de seu livro, que ele estava levando de bicicleta para revisão. Aquilo me despertou a curiosidade, e muitos anos depois procurei ler o livro, e descobri que lá o professor expunha uma tese sobre as indiscutíveis vantagens do progresso, mas demonstrava que isso exigia uma cuidadosa vigilância sobre o que o acompanha em termos de demolição dos mais caros valores da humanidade. Então eu sabia como ele pensava e procurei o ponto fraco:

– Nenhum ser humano sensato trocaria a vida numa sociedade democrática, ainda que moralmente decadente, e isso é questionável para a Inglaterra, pela vida numa ditadura…

– Democracia se faz com valores. Se não amo meu próximo, que me impede de roubar? Nesse conceito de democracia sem valores, sem respeito, sem Deus, não vejo como um ser humano possa levar uma vida satisfatória…

Ele continuava puxando a discussão para o lado que ele levaria vantagem, mas eu tinha uma carrada de argumentos para desfiar. Então tocou a sirene do fim do intervalo, mas eu continuei falando:

– Que valores podem justificar um governo empurrar para morte certa, milhares de jovens inocentes, só para desviar a atenção do povo do fato que a ditadura militar da Argentina está se acabando em corrupção?

Porém ele não se deu ao trabalho de responder. Arrumando suas cadernetas e colocando seu guarda-chuva no antebraço levantou-se dizendo:

– Sabe qual é a diferença entre um professor tradicional como eu e um jovem progressista como você? É que eu cumpro religiosamente minhas obrigações de trabalho pelas quais sou pago. Em seguida, apontou para um belo relógio de algibeira que tinha na mão esquerda, mostrando que, a partir daquele momento estávamos em horário de aula, e dirigiu-se à saída, seguido por um séquito de admiradores, enquanto eu ficava lá com cara de tacho, pensando em alguns dos meus colegas que se apresentavam como educadores progressistas, mas que jamais cumpriam o horário como faziam os professores conservadores. Meu pensamento correu célere para a questão dos valores e da integridade como base da ação educativa para os conservadores. Aprendi muito naquele debate.

Já a última vez que eu debati com um conservador, foi bem mais recente e aconteceu por causa de um movimento em favor da diversidade sexual, em que ele, indignado com alguns militantes que protestavam enfiando crucifixos no ânus, chegou a afirmar que gostaria de arrebentar a cara de cada um deles. Como ele era meu amigo e tinha falado aquilo num grupo onde eu estava conversando, achei por bem responder que o direito de protestar é essencial para a democracia, e que se alguém se sentia atingido, era só denunciar pelo crime de vilipêndio a símbolos religiosos, que os autores do crime responderiam na Justiça. Não cabia desqualificar todo o movimento por isso.

Eu ainda ia completar com uma criativa solução, a invenção do crucifixo farpado, mas ele se retirou do grupo enraivecido, indicando um local para colocar o crucifixo, que eu não posso mencionar aqui.

Enfim, se na penúltima discussão aprendi que os valores são a base inatacável do pensamento conservador, enquanto que, na última, apenas descobri que já não fazem mais intelectuais conservadores como os de antigamente.

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