Wilson Carvalho

Erich Fromm e o Mito

Wilson Carvalho

Se Erich Fromm, pensador humanista do século XX estivesse publicando no Brasil de hoje seu livro “Medo à Liberdade”, onde mostra o autoritarismo político como resultado de uma “mentalidade” autoritária, individualista e conformista que predomina em uma dada sociedade, em uma dada época, e que encontra certo alívio no consumismo capitalista alienante, provavelmente se tornaria guru da juventude e suas frases tipo: “A grande escolha de um homem e aquela em que ele se transcende é criar ou destruir, amar ou odiar”; “A felicidade é a aceitação corajosa da vida”; “O perigo dos homens no passado era se tornarem escravos. O perigo dos homens no futuro é ser tornarem robôs”, estariam em todas as redes sociais.

Erich Fromm (1900-1980) foi um filósofo, sociólogo e psicanalista alemão de origem judia que emigrou para os EUA com a ascensão de Hitler na Alemanha, e que participou da formação da Escola de Frankfurt, um dos maiores, senão o maior, dos pensadores humanistas que analisam profundamente os fatores psicossociais do conformismo e do autoritarismo na natureza humana, influenciado por Marx e Freud, e que produziu essa obra fundamental, intitulada “O medo à liberdade” (Escape From Freedom), originalmente publicado nos EUA, em 1941, que se tornou um clássico sobre a questão da liberdade.

A tradução em português, “medo à liberdade”, e não “medo da liberdade” ou “fuga da liberdade”, que seria literal, procura preservar o sentido da obra, que está relacionado à reação do homem perante a condição de liberdade.

E o que isso tem a ver com o mito? O mito é a forma mais primária, elementar, de racionalizar a inquietude e a sensação de desamparo do homem perante a sua incapacidade de compreender e explicar a realidade. Embora distinto do processo puramente racional (lógico/argumentativo) o mito se apresenta de forma simbólica e em uma linguagem narrativa, e responde (ou tenta responder) à mesma necessidade imperiosa de sentido que motiva a existência da Filosofia.

Enfim, diante da realidade decepcionante e angustiante, não é de estranhar que o homem parta para a solução radicalmente oposta àquela que o decepcionou, e recorra a um mito que lhe dê uma relativa segurança. O mito, por ser um mito, fatalmente decepcionará também, e então será substituído por outro, e assim as coisas vão de mal a pior.

O que prende a atenção na teorização de Fromm, é a sua capacidade de explicitar o processo psicológico que faz com que o homem, diante da irracionalidade da realidade, se agarre a algo ou alguém intrinsecamente incoerente, se deixe levar por ele e depois o defenda até a morte, mesmo diante de evidências cartesianas. A partir desse ponto (da defesa irracional de um ponto de vista já assumido), poderíamos chamar à colação a Teoria da Dissonância Cognitiva (Koller), que explica porque quando a pessoa que já percorreu dois terços do caminho, mesmo percebendo que aquele caminho está errado, ainda assim prossegue, só para provar que estava certa.

E quanto à opção em tomar o caminho errado, mesmo existindo importantes indícios de incoerência na escolha? O que Fromm tem a dizer sobre isso?

Na verdade, esse é um mecanismo autoritarista similar que tem, na sua essência, a necessidade de identificação com um ídolo, ou de partilhar sentimentos com um grupo para adquirir segurança, ainda que isso implique em submissão (que de outra forma seria inaceitável). Com isso a responsabilidade insuportável de decidir, de assumir e defender posições próprias, enfim, de exercer verdadeira liberdade, é escamoteada pela comodidade de seguir alguém. Fromm indica os três mecanismos básicos de fuga à condição de liberdade angustiante: o autoritarismo, a destrutividade, e a conformidade automatizada.

Se Fromm vivesse hoje seria o festejado teórico capaz de explicar porque somos tão incapazes de compreender que “a ditadura, seja de direita ou de esquerda, só garante a felicidade de quem é puxa-saco” (coloquei entre aspas porque essa era uma frase preferida de meu pai), e verdadeira democracia só se consegue votando com ética e responsabilidade, do síndico do prédio ao presidente da República, passando por vereadores, deputados e senadores. Não existem soluções mágicas (ou míticas).

Aristóteles dizia que o melhor dos regimes é a democracia, e o pior é a corrupção do melhor (a demagogia – algo assim como o nosso atual). Entretanto, na demagogia a gente ainda pode se mobilizar, reagir, e pelo menos tentar mudar o jogo. Na ditadura não. Na ditadura, depois que ela se instala e domina tudo, adeus.

Pena que Erich Fromm foi um pensador que viveu no século passado, e hoje poucos dão atenção ao seu pensamento. Mas se Erich Fromm vivesse hoje, certamente não teria presenciado os anos da ascensão do nazi-fascismo no mundo, vivência fundamental para o desenvolvimento de suas teorias.

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