O papel social da Filosofia Clínica
João Wilson Savino Carvalho
A Filosofia é o discurso radical, abrangente, metódico e sistemático, sobre o sentido do ser. Em sendo assim, como é possível vê-la como um procedimento terapêutico?
Se o sentido dado ao termo “terapia” é o mesmo aplicado às técnicas próprias do profissional da Psicologia, certamente que não. No meu ver, o espaço da Filosofia Clínica é mais próximo do espaço da Educação do que da Psicoterapia, sem, entretanto, se confundir com a autoajuda ou a com o domínio do Coaching.
Enfim, o que se quer destacar, desde logo, que a Filosofia Clínica é distinta da Psicologia que, embora também dividida em várias teorias, por vezes antagônicas e em conflito quando ao objeto de estudo (tipo: Psicanálise versus Behaviorismo), ainda assim apoia suas práticas terapêuticas em uma teoria definida.
Ao definir-se a Filosofia Clínica como o uso da Filosofia com fins terapêuticos, assume-se também a contradição existente entre os termos “filosofia” e “clínica”. O próprio Lucio Packter usava a imagem da colcha de retalhos para ilustrar a complexidade epistemológica da Filosofia Clínica. Não é a toa que o filósofo existencialista cristão karl Jaspers adepto da metodologia fenomenológica, considerado um dos pais da Psicopatologia, sempre alerta para o perigoso desvio da ciência em tentar conceber a humanidade sob um só denominador. Talvez a maior contribuição do filósofo Jaspers à Psicopatologia seja decorrente de sua concepção de consciência como interioridade real de uma vivência, que deflui de um dos princípios básicos de uma linha de pensamento filosófico pela qual possuo muito apreço, a Fenomenologia.
Com base nesses princípios vemos como coerente a concepção da prática terapêutica pautada na necessidade de um diálogo entre as vivências específicas e cotidianas do indivíduo com as linhas fundamentais do pensamento filosófico em sua epocalidade.
Enfim, em se tratando de prática terapêutica, cada caso é um caso.
Mas antes de se embrenhar pelo labirinto das concepções filosóficas, num projeto de introspecção filosófica, é necessário advertir o neófito de que a Filosofia pode tanto se apresentar como a redenção para a vida de alguém como pode ser o último empurrão que vai precipitar o incauto no abismo. Como saber?
Tente ler este texto até o fim. Se lhe fizer bem, prossiga pesquisando sobre Filosofia Clínica. Se não, invista na ajuda do profissional habilitado para isso (é investimento, não despesa). Por ora, vamos à elucubração metafísica que trago aqui, como exemplo do papel da Filosofia Clínica:
A principal questão da Filosofia é: o que é o ser? A resposta inicial é: ser é tudo aquilo que é; que existe; que está no mundo. Vamos então prosseguir com esse raciocínio, focando o problema filosófico que mais nos interessa agora (e sempre), que é o relativo ao sentido do homem na vida e no mundo: o homem é o animal singular em toda a natureza. Só ele tem consciência de si e do mundo, reage ao mundo aplicando a ferramenta que o faz singular e que o fez sobrepujar todos os outros seres vivos: a inteligência.
Um ser vivo é todo aquele que nasce, cresce, se reproduz e morre. Um ser inteligente é aquele que se apresenta dotado de consciência de si e do mundo; que é capaz de se adaptar continuamente, e de aprender progressivamente. Assim, sob a perspectiva do homem, a questão do ser pode ser apurada nas seguintes: por que a inteligência, e não apenas a vida? Por que a vida, e não apenas o ser? Por que o ser e não o nada?
Tomando nossa proposição inicial (ser é tudo aquilo que é) como verdadeira porque clara e distinta, somos forçados a deduzir que o nada não existe! Se existisse, seria parte do ser. Então, o ser é pleno, não tem começo, origem, limites, fim ou finalidade.
Como corolário dessa dedução temos que o ser não tem origem e nem fim. Existiu e sempre existirá. As mudanças se dão apenas no nível dos entes, que são individualizações do ser, que surgem e se acabam ao longo do tempo, mudando apenas na forma.
O tempo é uma sucessão de momentos, logo, não existe, não é, trata-se apenas de uma ilusão dos sentidos, própria dos seres efêmeros, perdidos em seus projetos de grandiosidade. O ser não é grande, não é maior ou menor, ele é tudo, não tem limites ou fronteiras porque fora dele é o nada, o não ser, aquilo que não existe. Da mesma forma pode-se concluir que o ser não tem começo, origem, fim ou tampouco finalidade. Se não fosse assim, não seria pleno. Ele apenas é. Essa é a conclusão lógica.
Contudo, há algo real e que não pode ser escamoteado: a nossa existência individual, temporal, finita, sujeita ao acaso e às vicissitudes do mundo, onde a única coisa permanente é a mudança. É dela que devemos dar conta. É ela que é de nossa inescusável e total responsabilidade.
Em sendo assim, o sentido do ser é a própria existência, que se esgota nela mesma, e se o homem quiser dar um sentido a essa existência, tem que começar por compreender que ele não é nada e nunca será nada, mas apenas e tão somente tudo o que conseguir construir nessa mísera e curta existência, e, mesmo assim, tudo isso se acabará quando se extinguirem os outros seres que guardavam na memória (oral ou escrita) tudo o que ele construiu nessa sua existência e que foi importante para a existência coletiva.
Daí cabe concluir pelo valor da autoconstrução permanente, para este mísero ser finito e temporal. Ela começa pelo seu próprio reconhecimento como um eterno aprendiz, passa pela capacidade de se ver no outro, e prossegue na disposição de ver o lado bom de tudo o que acontece, e de enfrentar os percalços da vida com serenidade e galhardia.
Vale a pena uma vida dedicada à autoconstrução permanente, tendo como pano de fundo a coletividade?
Sim, vale a pena. O homem é um animal inteligente, e isso é suficiente para que carregue o peso da responsabilidade em decidir o que vai fazer de sua vida. Se você está vivo, livre e consciente, então você está obrigado a escolher, e dessa escolha pode resultar uma vida feliz e gratificante ou uma vida amarga e sem graça.
Sugiro escolher a rota da autoconstrução. A construção permanente de si e dos outros, pela literatura, pela Filosofia, pela educação como um todo. Não foram relatados efeitos colaterais até o presente momento.