Wilson Carvalho

Tomo contato pelos telejornais de mais um caso de profissional de nível superior que consegue aqui exercer profissões de extrema responsabilidade técnica, sem comprovar a devida qualificação ou registro. A primeira questão e que me leva a refletir é: por que alguém faz isso? Sócrates sintetizava o valor moral do conhecimento em uma frase: o homem erra porque não tem o conhecimento da extensão das consequências de seu erro. Seria o caso?

O Amapá, por sua situação de isolamento geográfico, e pela carência de técnicos de nível superior, sempre padeceu na mão de farsantes. Tivemos aqui um desfile de médicos que não eram médicos, psicólogos, economistas, e até advogados que não passavam de rábulas e aqui ganharam bastante dinheiro antes de sumir no oco do mundo. Eu mesmo, quando era dono de um bar na praia da Fazendinha empreguei um garçom que se dizia psicólogo injustiçado por ter trabalhado quase um ano numa instituição assistencial e exonerado por intrigas de pessoas invejosas. Ele não sabia que eu era formado em psicologia, e tanto que começamos a conversar sobre alguns conceitos básicos, ele acabou confessando que era um “psicólogo prático”, que se sentia capaz de resolver problemas psicológicos das pessoas, e que soube que em Macapá havia carência desse profissional, e por isso decidiu se apresentar como um psicólogo cujo diploma ainda estava em trâmite, argumento que lhe rendeu quase um ano de salário.

Enquanto ele me contava sua história, eu ficava lembrando um amigo recém-formado que ficou cerca de seis meses sobrevivendo como taxista enquanto saia o registro de seu diploma. Ele era uma pessoa reconhecidamente correta, todos sabiam que ele tinha se deslocado para Belém a duras penas para obter uma formação superior, recebia bolsa do Governo do TFA e crédito educativo, mas para ele não houve exceção. Para o desconhecido “psicólogo” sim. Airton Portela, um amigo estudante de direito, hoje juiz federal, me explicou o que ele chamava de “síndrome do sobrenome estrangeiro”. Dizia que a gente passa por uma divulgação da palestra do “Dr. Silva” e nem dá bola. Mas se estiver escrito que é do “Dr. Zarolhokovisky”, aí você dá atenção. E eu me pergunto por que agimos assim.

Como não poderia ser diferente, no período de pioneirismo de nossa universidade tivemos também professores que surgiram como a salvação da pátria, mas só serviram para atrapalhar, e o caso do “professor do currículo turbinado” é talvez a história mais emblemática da luta que tem sido a composição dos quadros da UNIFAP, desde o primeiro processo seletivo de docentes, ainda em 1991, o ano de implantação da nossa primeira IFES.

O cara foi, disparado, o primeiro colocado, inclusive com uma pontuação três vezes superior a minha, que a essa altura já possuía duas graduações, especialização e título de mestre, além de razoável experiência no magistério superior. Ainda bem que não concorri com ele, que, segundo o currículo apresentado para a seleção, possuía títulos de Mestre e Doutor obtido em uma universidade do Michigan, falava onze idiomas e vários dialetos, tinha vastíssima experiência no magistério jurídico, na área diplomática, jornalística e de marketing. Até brevê, na categoria de piloto privado, o cidadão ostentava.

Para alguns, foi um excelente mestre. Para outros, que só posteriormente confessaram “sempre ter desconfiado”, seu conhecimento jurídico era apenas de rábula. Eu, para falar a verdade, nunca desconfiei, até porque sempre que conversava com ele, acabava impressionado pela sua vasta e variada cultura, sua fluência em inglês e com a perfeição de sua expressão em vernáculo.

Poderia ter ficado muito tempo advogando e lecionando na UNIFAP, porém seu ego agigantado foi sua perdição. Alunos me procuraram para reclamar que ele os humilhava, atirando uma cópia encadernada de seu imenso currículo em cima da mesa, e frequentemente zombava de seus colegas, embora fossem todos juízes, promotores, e advogados muito bem sucedidos. Pra completar, se inscreveu em um concurso de magistratura, foi aprovado na prova escrita e excluído na prova oral (segundo ele) porque teria tentado demonstrar que seus examinadores estavam errados.

Assim, não demorou muito que começassem a surgir histórias colocando em dúvida todo esse cabedal de conhecimentos. Por que não providenciava a sua regularização junto à OAB local, se praticava advocacia regularmente? Por que não apresentava seu diploma de bacharel em direito, insistindo em apresentar uma certidão, cuja validade sempre foi por prazo limitado? Além desses indícios, realmente preocupantes, corriam muitas histórias, ainda que aparentemente fantasiosas, como a de que teria sido mandado aos EUA para estudar técnicas de manipulação de massas, pela ditadura militar, e que por isso havia cursado doutorado sem ser sequer bacharel.

Aliado a isso, havia o movimento estudantil da UNIFAP, concentrado principalmente nos cursos de história e geografia, que lutava pela eleição direta para reitor, e que era apoiado discretamente por um pequeno grupo de professores (não havia quadro docente, e os professores provisórios não podiam entrar em greve). Esse movimento, que acabou sendo apoiado maciçamente pelos estudantes quando do confronto com a segunda reitora pro-tempore (nomeada em um contexto de inequívoca ingerência político-partidária na Universidade), utilizou-se de uma estratégia muito eficaz, um boicote sistemático ao Conselho Superior de Implantação (CONSIMP), o que deixou a inábil gestora e seu staff em uma situação de completo isolamento, a tal ponto que a área acadêmica restou dirigida pelos coordenadores de cursos, que, como indicados pelos colegiados com representação discente, eram reconhecidos pelo movimento estudantil.

A reitora, acuada, precisava de um factoide para desviar as atenções. O caso do tal professor viria a calhar: instaurou uma comissão de PAD a ser presidida pelo Coordenador do Curso de Direito, e composta com o Coordenador do Curso de História e com um técnico de nível superior.

Tentei alegar amizade pessoal com o investigado, para esquivar-me dessa tarefa nada agradável, sem sucesso, afinal, o cidadão morava em Macapá há pouco mais de um ano. Reuni a Comissão e iniciamos o trabalho pela análise da documentação. Havia uma fartura de indícios, mas nenhuma prova. Conversei com alguns professores do curso de Direito e ouvi recomendações inesquecíveis, tipo: “quando o sujeito precisa dizer o tempo todo quem ele é, é porque na realidade é um ninguém”. O professor Carlos Renato, na época juiz do trabalho, que tinha uma bela história de embate com a ditadura no movimento estudantil paraense, além de uma enorme cultura literária, e por isso eu o admirava muito, me fez uma colocação interessante: “ninguém se torna uma farsa da noite para o dia. A coisa vai acontecendo aos poucos, e quando o sujeito vê, está num caminho sem volta”. Com isso, decidi que não deixaria o trabalho inconcluso.

Mas depois de tatear infrutiferamente para obter provas concretas sobre o caso, fui obrigado a colocar a reitora contra a parede: não havia como produzir provas só analisando a documentação apresentada pelo próprio investigado. E assim fui enviado ao Rio de Janeiro onde consegui localizar o cartório no qual havia sido feita a tradução juramentada dos títulos e a autenticação da certidão (até a rua já havia mudado de nome), mas as pessoas ainda se lembravam de um funcionário do cartório que apresentava todas as características do nosso personagem. Localizei também o autor da assinatura da certidão, que demonstrou, na minha frente, ser canhoto, e que me deu uma declaração de próprio punho, de jamais ter emitido tal certidão. Trouxe também o histórico escolar, onde estava demonstrado o curso inconcluso pela falta de duas disciplinas para a integralização do currículo e a graduação como bacharel em direito.

Nessa investigação a maior dificuldade que encontrei foi no MEC, onde uma vetusta servidora me demonstrou toda a sua indignação: Meu Deus! Que perseguição vocês estão fazendo com esse professor! Ele está muito bem respaldado! Olhe, veja só, o nome dele consta das “documenta” do MEC!  E me exibiu o que ela julgava demonstração definitiva de que não havia fraude na documentação do professor-doutor, porém empalideceu e ficou muda quando apresentei o material que já havia coletado. E quando fechei meu convencimento com os colegas da Comissão, mediante provas realmente inequívocas, apresentamos o relatório final à Reitoria da UNIFAP.

Então o cidadão sumiu, deixando várias mulheres desconsoladas e para os professores do curso de direito a tarefa de reavaliar todos os alunos nas disciplinas por ele ministradas. Hoje não creio que isso teria sido necessário, e mais convicto fico quando observo que todos os alunos do curso de direito das turmas de 1991 e 1992 são hoje promotores, juízes ou advogados de sucesso. Tempos depois correu a notícia de que teria sido preso, e solto em seguida em função da idade avançada. Teria tido um enfarto, com sequelas graves. Teria morrido tranquilo em uma cidade do interior do Rio de Janeiro. Nada confirmado. De verdadeiro mesmo ficou o cuidado que me dispensou o Prof. Leonil Amanajás, na época o dono do CEAP, que me chamou para me contar uma história que ele teria tomado conhecimento (mas também não tinha provas), ocorrida em outro estado, onde o cidadão teria abandonado um apartamento com uma imensa pilha de caixas de pistolas Glock, vazias. Com um ar de preocupação, ainda completou: “talvez isso explique porque ele conseguiu fazer um doutorado no exterior sem ter completado seu curso superior, e isso no auge da ditadura militar”. Enfim, me deixou ciente do risco que eu estava correndo.

A Comissão do PAD também concluiu pela inexistência de responsabilidade da equipe da reitora anterior no caso, porquanto a documentação apresentada não era inteiramente forjada (de fato, o cidadão chegou a ser professor, em outras universidades, públicas e particulares) e os selos do cartório nos documentos apresentados eram autênticos, e o caso terminou então sem maiores consequências, recebendo a solução legal e adequada. No final, não serviu sequer para prender a atenção do movimento estudantil, que acabou sendo bem sucedido no seu desiderato de derrubar a reconhecidamente autoritária reitora, embora não lograsse sucesso quanto à eleição para reitor, que ainda demoraria mais dez anos para ser realmente institucionalizada na UNIFAP.

Enfim, esta é a história do professor do currículo turbinado, que contém uma série de lições que não devemos olvidar, considerando, principalmente, que o cidadão tinha sobrenome holandês, características de europeu, e aparência respeitável. Será que, se tivesse um sobrenome e um tipo bem macapaense, teria sido tratado da mesma forma?

Bom, o fato é que ele era muito inteligente, tinha notável conhecimento jurídico, mas não agia de boa fé. Talvez sua mirabolante história de vida o tivesse conduzido à crença de que poderia manipular as pessoas até o fim da vida. Enfim, cabe lembrar uma famosa frase de Sócrates: a mentira nunca vive o suficiente para envelhecer. Afinal, “viver é isso: ficar se equilibrando o tempo todo entre escolhas e consequências” (Sartre).

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