Lícia Carvalho

O que é a solidariedade?

Lícia Carvalho

Para a célebre antropóloga Margareth Mead, quando se estuda os restos de um grupamento social humano, o mais importante sinal de que existia ali uma sociedade minimamente civilizada é um fêmur que foi quebrado e foi curado, porque é um osso que leva meses para cicatrizar, o que significa que aquele ser que teve o fêmur quebrado sobreviveu porque teve a solidariedade de seus semelhantes, caso contrário, morreria de fome ou seria comido antes do osso cicatrizar. O sentido basal de solidariedade é então o de sentimento de identificação com o próximo, que viabiliza e torna a vida em sociedade mais vantajosa para cada indivíduo que a compõe.

Na forma de sentimento comum, de ação do individual ao coletivo, teria surgido no século XIX, como resposta às realidades decorrentes da era industrial, remetendo-se a responsabilidade recíproca na sociedade.

Um fato social, que para Émile Durkheim é o fator que garante a coesão social coletiva, toda maneira de fazer ou exercer sobre o indivíduo uma coerção geral e exterior abrangendo uma existência própria, que funciona como um organismo baseado no respeito, apoio, igualdade de valores comuns, ações de acolhimento e regras dentre a diversidade cultural integrando os indivíduos, com seus direitos e deveres em relação aos outros.

 No atual cenário de pandemia em meio a conflitos, a solidariedade se tornou uma das principais armas contra a pandemia do covid-19, em função de que muitas vidas foram perdidas, com um número enorme de pessoas doentes, com suas famílias abaladas e sem saber ao certo o que fariam para sobreviver, enfrentar o vírus, ficar em isolamento e, ao mesmo tempo, contornar a crise econômica para combater a fome e a miséria.

Por estranho que pareça, no tocante das ações voluntárias, vemos que, a maioria das vezes, ela acontece entre os mais pobres, que se mobilizam como podem para doar de alimentos, produtos de higiene pessoal, tecidos, roupas e apoio mínimo à saúde comunitária. Isso é o óbvio, e o esperado seria que fosse maior entre os ricos e esclarecidos, e por isso se estranha que é mais fácil observar pobres e favelados trabalhando e organizando como um todo harmônico e solidário para melhor conscientizar e cuidar de quem está no grupo de risco e em vulnerabilidade social.

Mas talvez isso ocorra por conta do sentimento de satisfação, que surge no indivíduo e no grupo após prestar solidariedade, trazendo a sensação de bem-estar físico e psíquico, aumentando o otimismo e confiança de que em breve a situação será melhor.

Pensar e agir de forma positiva, para Émile Durkheim, superar a solidariedade mecânica na qual visa harmonizar como laços formando a coesão social, mediando conflitos do direito primitivo e conservar costumes, do punitivo de sofrer sanções, simples de ir e vir, com objetivos a serem alcançados expressando uma ligação direta da consciência particular a sociedade, as sanções estão difusas entre o corpo social, para formar o vínculo social característico da solidariedade orgânica, que resulta na divisão social do trabalho, uma consciência social ampla, cuja funcionalidade é coerção de forma mediadora do direito de reparação e chegar a compreensão da sociedade, necessitando  que os diferentes órgãos cumpram suas leis e funções de forma interligada e interdependentes (v. Durkheim, Émile. Da divisão do trabalho social. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.) .

Émile Durkheim, em sua teoria, preocupava-se com as mudanças das sociedades tradicionais e modernas, em termos técnicos, econômicos e principalmente moral entre indivíduos e grupos. Evidentemente, em uma sociedade civilizada, suas instituições não podem permanecer inertes diante de demandas tão cruciais para a sobrevivência da sociedade.

Aqui cabe lembrar a Fundação Legião Brasileira de Assistência – FLBA, que era responsável pela assistência social em nível federal, com superintendências em todos os estados e ramificações em todos os municípios, na área urbana e rural, atuando de forma principalmente preventiva.

A FLBA foi fundada em 28 de agosto de 1942 por Darcy Vargas, esposa de Getúlio Vargas, a instituição tinha a finalidade de “amparar os soldados brasileiros e seus familiares” durante os anos que o Brasil participou da Segunda Guerra Mundial. Era a fundação de assistência social no Brasil, baseada na caridade, filantropia e na solidariedade religiosa. Oferecia um enorme conjunto de serviços, programas, projetos e benefícios, no âmbito da assistência social, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais.

No estado do Amapá foram implantados os Centros de referência de assistência social CRAS, que surgiram em 1999 com o nome de NAF. Núcleo de Apoio à Família, e em 2005, a principal função é a porta de entrada das políticas públicas e benefícios ofertados, também como promoção aos direitos sociais: Auxílio Brasil (antigo bolsa família), FGTS Emergencial, Tarifa Social de Energia elétrica, Benefício Emergencial, Programa Brasil Carinhoso, Programa Nacional de Acesso ao Ensino e Emprego (Pronatec), etc…

Mas a FLBA foi extinta em 21 de outubro de 1995, desativada no início do governo Fernando Henrique Cardoso. Na verdade, o FHC somente oficializou a extinção. Na prática, ela ocorreu no Governo Collor, ao argumento de que essa instituição havia assumido uma função que deveria ser de cada estado, e que continuava a existir somente por motivos políticos.

Com a extinção da FLBA, todos os seus programas e centros de apoio à saúde, nutrição e acompanhamento puerperal, educação para o trabalho, apoio a portadores de deficiência e idosos, a carentes da área rural, organização comunitária, etc, foram transferidos para a responsabilidade dos estados, e nisso se perdeu a possibilidade de uma ação social integrada em nível nacional.

Enfim, os sentimentos de comunhão de interesses por desenvolver a reciprocidade nas relações sociais, da sociedade simples às complexas, das funções sociais dos indivíduos, são semelhantes às funções sociais do trabalho, que são bastante complexas, com predomínio do mecanismo de coerção imediata, violenta e punitiva para a coerção formal exercida por lei, do predomínio do Direito de punir ao predomínio do Direito restitutivo. E assim da sociedade economicamente simples à economicamente complexa, construindo a solidariedade e social reconhecendo que todos são importantes!

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