João Wilson Savino Carvalho

Wilson Carvalho

Apesar de ser um sujeito conhecido pela sensatez, às vezes ele se tornava mesmo um cara insuportável. Não porque fosse exatamente um chato, inconveniente ou uma pessoa ruim, mas porque sempre tinha uma explicação definitiva para tudo. Tinha mania de explicar e acabava sofrendo muito com isso.

O fato é que ele tinha realmente muita experiência de vida, era viajado e tinha trabalhado em muitos ofícios, conhecido tanto os lugares como os bafejos da fortuna, e tanto os bons tempos como as desventuras, e de todas essas experiências, havia colhido um dito, uma máxima, que aplicava como uma reza capaz de solucionar todos os problemas da humanidade.

Se alguém se mostrava triste porque seu time do coração havia tomado uma goleada, ele prontamente explicava que essa era a beleza do futebol, que colocava esse esporte no pedestal do coração das multidões, que era o resultado imprevisto, variável, dependente da sorte ou do lampejo de um gênio solitário, que tira forças do âmago de seu ser para fazer a vitória de seu time fraco e capenga, produzindo um resultado inesperado. E por isso as pessoas lotavam os estádios de futebol e não os ginásios de basquete, porque os brasileiros amam o imponderável e por isso a nossa vida era assim, meio que ao sabor da sorte, e daí para passar a explicar o problema da falta de planejamento no Brasil era um pulo…

Às vezes era mais direto. Bastava alguém comentar como os políticos estão assaltando o país que ele começava:

Ah! É como dizia Eça de Queiroz, os políticos e as fraldas devem ser trocados periodicamente pela mesma razão! E, de preferência, em um prazo bem curto… E logo prosseguia no corolário dessas ideias: aliás, acreditar que alguém não vai roubar porque é de sua natureza ser incorruptível, é uma tremenda bobagem! Somos todos iguais, capazes de qualquer coisa, mas como a sociedade não pode se manter se todo mundo mete a mão e ninguém põe nada, temos que vigiar uns aos outros, para podermos sobreviver civilizadamente… Outra bobagem é pensar que uma pessoa vai deixar de meter a mão no dinheiro público só porque ganha uma fábula de salário… As necessidades humanas são infinitas… O sujeito ganha uma fábula, mas nunca é suficiente, porque ele tem uma mulher, que quer mais e mais, filhos, que tem suas próprias aspirações, amantes para satisfazer os caprichos… E aí a roubalheira nunca tem fim… Já falei pra vocês como a coisa funciona na China?

Mas era de sua natureza, isso. Sua mente funcionava naturalmente como um jogo de conhecimentos, um ficheiro vivo e dinâmico de informações que se reconfigurava em cada questionamento de uma nova informação, só sossegando quando conseguisse incorporar a nova de uma forma explicável pelas antigas. 

Uma vez parou junto a um grupo de mecânicos de ar intrigado diante de um motor que, em marcha lenta, fazia um barulho que lembrava o arfar de um casal de amantes. Por três ou quatro minutos fez a mesma expressão dos mecânicos, e então, num repente, começou a explicar:

– É o eixo, tem que estar com um pequeno empenamento… Sim, só pode ser isso, porque a sequência de explosões nas câmaras de combustão não se mantém em um ritmo regular. É… O motor não perde força, não para… Então deve ser o virabrequim que…  

Mas… Quem é o senhor? É mecânico?

Ficou indignado por que foi interrompido por uma pergunta que considerava absurda e totalmente descabida, já que questionava um conhecimento com base numa formação em algum curso ou coisa parecida. Formalismo! Sempre isso.

Durante muito tempo viveu razoavelmente feliz consigo mesmo, mas essas coisas o deixavam cada vez mais decepcionado. E ele que era uma pessoa alegre e comunicativa, foi se tornando amargo e introspectivo. Mas eis que um dia…

Ele viajava de barco pelo rio Amazonas, próximo a Laranjal do Jari, no Amapá. O camarote em que ele estava era exíguo, mas tinha um beliche junto à porta e um banheiro micro, que ele estava justamente utilizando naquele momento. Sentado no vaso, sentiu um tranco no barco, que imediatamente começou a girar levemente, levando ao desligamento do motor. Com isso o barco começou a balançar cada vez mais forte. O beliche rangeu com a inclinação do barco, como se fosse soltar-se a qualquer momento. Ele analisou a situação e num átimo percebeu que o beliche poderia se deslocar e travar a porta, e concluiu que precisava lançar-se imediatamente na direção da porta para sair da armadilha que se tornaria o camarote, caso o barco fosse a pique.

Optou, entretanto, por primeiro limpar-se e vestir suas roupas, mas enquanto fazia isso, um balanço maior soltou de vez o beliche que escorregou e travou a porta. Agora, se o barco fosse ao fundo, o explicador estaria condenado a uma morte horrível. Claro, toda a sua vida passou como um foguete na sua mente.

Mas a sorte não o havia abandonado totalmente, e outro forte balanço do barco levou o beliche de volta a sua posição inicial. Foi o tempo suficiente para o explicador abrir a porta, e antes do balanço seguinte, sair do camarote para o pandemônio que havia se tornado o convés do barco, com pessoas gritando, outras rezando, e a tripulação pedindo calma que o problema logo seria resolvido.

E quando o explicador olhou para o lado, deu com uma mocinha, de quinze ou dezesseis, enrolada unicamente em uma toalha, com seu salva-vidas perfeitamente abotoado, e com o braço trançado em uma haste da amurada, na posição mais adequada para enfrentar uma eventual virada de barco e sua possibilidade de flutuar até a chegada do socorro.

Eu, hein! Saí do jeito que deu… Minha vida em primeiro lugar… Ela disse diretamente a ele quanto viu que ele a olhava admirado.

Uma garota, uma adolescente… Mas soube priorizar sua vida, pouco se importando em sair quase nua do banheiro… E eu? Porque fiz tamanha besteira? Esse pensamento ricochetava na mente do explicador, e prosseguiu assim durante a maior parte da noite, quando chegou o socorro e o barco foi rebocado a um porto seguro, para ser reparado.

A noite tinha sido apavorante, mas não foi o medo do perigo de uma viagem de barco que fez com que ele voltasse para sua cidade natal de avião, mas sim o medo dele próprio, deflagrado pela dissonância cognitiva que se instalou quando, ele, o mais racional de todos, agiu de forma profundamente irracional. O certo teria sido sair com a bunda por limpar, mas não expor minha vida a um risco que eu já tinha identificado. Meu instinto de sobrevivência apoiado em uma análise racional da situação foi superado por um hábito social irrelevante naquele momento de perigo. Pensava ele o tempo todo.

Ainda o perturbaria muito tempo essa questão, mas a sorte continuava ao seu lado, e ele, em uma tarde ociosa na orla da cidade, encontrou e reconheceu a garota do barco que quase naufragou. Aproximou-se dela com a maior naturalidade, já sabendo que também seria reconhecido.

– Acho que você estava mais bonita vestida só de toalha e salva-vidas…

– Ah! Eu, hein! Depois de ter crescido dentro de um barco, balançando no rio a vida toda, acha que eu ia morrer trancada num camarote? Isso acontece muito nesse riozão… Ela respondia com a mesma naturalidade, como se fossem amigos de muito tempo.

E eles conversaram muito, quase a tarde inteira. Ela era quase uma criança, tinha pouco estudo e era até meio desbocada, mas era divertida e via as coisas sempre pelo lado positivo. Na verdade, ela era exatamente a pessoa que ele precisava. E por isso passaram a se encontrar mais vezes. Ela gostava de tudo o que ele detestava: sorvete de rua, sanduiche maior que a boca… E ela ria muito das coisas que ele gostava. Mas, no final das contas, riam muito os dois. E a despeito de toda essa afinidade, ele não sentiu tanto quanto seria de esperar quando ela precisou voltar a viajar. Afinal, a vida dela era naquele barco.

Mas seu maior espanto seria a descoberta de que ela não sabia ler. Bom, pelo menos não como a maioria das pessoas leem. Ela, na verdade, conhecia os letreiros pelo formato, e não pela composição silábica. E conhecia todas as letras e números. Parecia até que ela não lia porque ler não lhe despertava o interesse.

– Meu Deus! Como é que uma garota tão inteligente não sabe ler?

– Mas eu leio! Eu leio o mundo, e nisso sou muito melhor que você.

– Lê o mundo? Você lê o mundo! E como é que pode ser isso?

– Ah! Isso depende da forma como você vê a vida, do que você dá importância… Se der importância para as coisas certas, vai realmente entender a vida… Tá vendo, lá longe, do outro lado do rio? O contorno azulado das ilhas? Vê aquele pedaço em tom mais claro? Isso significa que ali começa um canal que separa duas ilhas… Você sabia disso?

– Não, não sabia… Mas também, você sabe disso porque é ribeirinha, e eu não…

– É? Então olhe aquela castanholeira! Essa cidade era cheia delas e agora estão se acabando por conta de uma planta parasita que vai matando a castanholeira aos poucos! Sabia disso?

– Não, não é minha área! Mas você sabe disso porque é do interior…

– Ah! Não é por isso não! É porque eu sei ler o mundo e você não. Olha só, você está preocupado porque daqui a pouco eu vou embora e talvez você não me veja nunca mais… E eu estou preocupada em aproveitar o máximo do meu tempo com você… Depois eu vou seguir a minha vida, vou viver outras coisas…

– Sim, você é jovem… Não viu metade das coisas que eu já vivi.

– É… Mas se eu agisse como você, eu seria velha sem sequer ter vivido…

Aquela última frase da garota foi pra encerrar o diálogo. Ele agora a olhava com uma imensa admiração, quase envergonhado de tê-la criticado por não saber ler. Mas tinha consciência da incrível mudança que nele havia se operado a partir daquele diálogo. Uma espécie de serenidade o invadia, como a demonstrar o quanto ela tinha sido importante na vida dele. Ia embora, mas ia deixar muito dela com ele.

Seria de esperar que o explicador voltasse a sua rotina de vida – trabalho, cinema, barzinho com os amigos… Mas não. A vida dele tinha sofrido um impacto com a presença da garota tão bobinha, infantil mesmo para a idade dela, mas que era tão eficaz na tarefa de ser feliz. É que agora ele já não mais explicava tudo o tempo todo. Havia aprendido a ouvir, a aprender com os outros, havia aprendido o mais alto grau da aprendizagem. Havia aprendido a aprender.

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