Por Malrício França

Tempos atrás, ao pedalar pelo centro da cidade, vi pela primeira vez a matilha. Ela caminhava, ou melhor, marchava, pelos arredores da praça cívica, e parecia até alegre e inofensiva, com seus membros barulhentos usando adereços verdes e amarelos. Naquela época não eram tantos, mas depois chegaram a ultrapassar em todo o Brasil, a marca histórica de 50 milhões. Com o tempo foram aumentando em número e se apresentando cada vez mais confiantes e ferozes, pelos quatro cantos do país.

O barulho ao qual me referi durou cerca de anos, e até meses atrás ainda era possível de ser ouvido, já que a matilha, mesmo estando em um número menor, continuava a se reunir e a mostrar o seu poder alegremente, o que era de surpreender, pois milhares deles morriam por falta de vacinas. Mas o que estava matando aos milhares não era a raiva, e isso se podia concluir pelo fato que eles sentiam aversão pela cor vermelha, e não pela água, como acontece na hidrofobia.

Alem da surpresa citada há pouco, a matilha, pelo seu tamanho e persistência, provocava dúvidas que poderiam ser sintetizadas em questões como: por que, afinal, mesmo após tanto sofrimento causado, tanto aos que queriam como aos que não queriam fazer parte dela, os componentes da matilha ainda continuavam obedecendo alegremente ao seu líder? Por que continuam marchando com o mesmo focinho empinado de antes, indo para lá e para cá, carregando bandeiras do Brasil e lançando aos pedestres que passam um olhar arrogante, como se fossem cães de raça, quando na verdade, eram vira-latas caramelos.

Mas o que me incomoda não é o barulho com que tentam intimidar os outros. Tampouco é o fato de acharem superiores, de se acreditarem detentores de um saber histórico que todos os pobres mortais ignoram. Na verdade, o que me incomoda é que para eles todos os que pensam e agem de forma diferente da deles merecem ataques ferozes e desmedidos, incabíveis até para os irracionais, que só atacam movidos pela fome ou pelo instinto de defesa.

Esse comportamento, conta o filósofo Italiano Geovanni Reale (1931-2014) no seu livro chamado História da Filosofia– volume 6: de Nietzsche à escola de Frankfurt (2006), foi estudado pelo filósofo alemão naturalizado americano Erich Fromm (1900-1980), que na obra intitulada Medo à Liberdade (título da tradução brasileira), publicada no ano de 1941, explicou acerca da importância de se afastar dos grupos, passando assim a pensar por conta própria e a romper com aquilo que ele chamou de conformismo gregário, ou seja, com o ato de se aceitar, sem nenhuma objeção, as normas impostas ao grupo, que se organiza em forma de bando ou como no em nosso exemplo, em forma de matilha.

No entanto, esse afastamento citado a pouco, tem um lado ruim e muitas vezes influenciador de decisões, porque traz consigo inevitavelmente o peso da responsabilidade pelos próprios atos e também da solidão, que devemos aprender a lidar se quisermos ser verdadeiramente livres. Claro que muitos dos membros da matilha a qual venho me referindo acreditam ser livres. Mas como poderiam ser realmente livres, se pensam e agem de forma sempre igual e conforme ao pensamento de um só?

Segundo Erich Fromm, liberdade é pensar autonomamente e agir conforme suas próprias decisões. Em sua obra intitulada Desobediência como problema psicológico e moral, de 1963, mostra que ser livre só é possível através de atos de desobediência, que é o que dá início à história humana, e que é contrário as regras da matilha, sendo a principal delas a disciplina.

Assim sendo, não vejo um futuro livre para os membros dessa matilha, caso prefiram continuar sendo obedientes a um líder que os deixou tomando chuva por muitos dias em frente aos quartéis do exército espalhados pelo país, fazendo-os esperar pela sua volta, assim como o Hachiko, do filme “Sempre ao seu lado” (2009). A coincidência é que nos dois casos há um personagem fictício que não voltará, sendo que, em um deles, o personagem é um professor universitário, no outro não.

Se eu pudesse dizer algo para os membros dessa matilha, após o que venho dizendo com base no pensamento de Erich Fromm, eu diria “voltem para a condição humana, mesmo que lhes pese tal decisão. Desobedeçam, saiam da matilha, só assim vocês serão verdadeiramente livres!”.

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